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O Brasil pelos olhos de "Amélia", de Ana Carolina
Como ela mesma faz questão de afirmar, não há nada que agrade mais a Ana Carolina do que rir e fazer rir. A entrevista com a diretora de Amélia vira uma comédia de erros quando Ana conta a história do seqüestro do roteiro do filme. Apesar disso, ela se desculpa: "Hoje estou meio chocha." Ana Carolina é uma pessoa maravilhosa. Inteligente, bonita. Não é mais a jovem ousada que arrombou as portas do cinema brasileiro com seu documentário sobre Getúlio Vargas (Trabalhadores do Brasil) e depois exorcizou seus fantasmas de sexo e poder na trilogia formada por Mar de Rosas, Das Tripas Coração e Sonho de Valsa. Mas engana-se quem pensa que uma Ana Carolina mais madura tenha deixado de ser provocativa e até malcomportada. A prova é Amélia.
Pode-se fazer uma leitura psicanalítica da obra de Ana Carolina. Isso vale principalmente para Trabalhadores do Brasil e para os filmes da trilogia. Ela observa que Amélia talvez seja o menos psicanalítico de seus filmes, embora a divisão cultural (Brasil e Europa) do filme atual revele algo que se passa na cabeça da autora. Como tal, comporta uma leitura psicanalítica, também. Ana assume que deve muito à psicanálise. Os anos de análise fizeram dela uma pessoa melhor, "menos infeliz". Como - Ana Carolina considera-se uma pessoa infeliz? "Não, mas se eu não tivesse feito análise com certeza ia ficar escavando na minha vida até conseguir ser infeliz." Com a trilogia, ela afirma ter encerrado uma fase. Está agora liberada para contar histórias. É o que quer fazer. Amélia é o primeiro filme do resto da vida da diretora.
Freud, para ela, começou com o documentário sobre Getúlio. Ela cantarola baixinho a letra que criou (e Macalé musicou) para aquele filme - "Todo povo brasileiro chorou/Morreu o presidente/Morreu suicidado..." Discutindo a figura paternal de Getúlio, Ana fez de Trabalhadores do Brasil o seu filme sobre a morte do pai. E, como ela diz, se o pai está morto, "então está tudo liberado". É o sentido da trilogia. Paulistana radicada no Rio, Ana não fechou o apartamento em São Paulo, ao qual volta, periodicamente. Por meio da trilogia, quis colocar na tela a alma feminina. Sexo, dor, gritos e delírios, Ana Carolina liberou geral.
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Os três filmes traçam um painel de buscas e angústias, expressam as memórias da moça malcomportada que ela foi (e ainda é). Se alguém alguma vez tentou impor limites à irreverência da diretora, com certeza deu-se mal. Ela reage a qualquer imposição de censura ou poder. "Basta me dizerem não pode para eu tentar mostrar que sim", diz. A trilogia liberou-a, mas é falso dizer que os três filmes marcam um processo evolutivo, rumo ao amadurecimento artístico e pessoal. Isso está lá, claro, mas Ana nunca se preocupou em racionalizar emoções. Mas ela sabe que se projeta nesses três filmes. Em Mar de Rosas, ela diz que fica em casa, em Das Tripas Coração, que vai à escola, e sobre Sonho de Valsa diz que virou gente. E quanto a Amélia? "Olho o Brasil", resume.
Um olhar que consumiu 14 anos da vida da diretora - 14! No início, era um filme sobre três matutas do interior de Minas, no começo do século. Ana escrevia o roteiro, mas não sentia o estalo. Não conseguia ver o filme tomando forma. Procurou pensar no que estava acontecendo no Brasil, na época. Descobriu as referências sobre a passagem da célebre Sara Bernhardt pelo País. Começou a superpor as duas coisas. Foi assim que surgiu a história de "Amélia", a aia brasileira da grande Sarah, irmã das matutas mineiras. Foi assim que o filme evoluiu no rumo de uma análise de choques naturais.
Mas Ana descarta que tudo isso tenha vindo dentro de um processo racional. Mais uma vez é preciso invocar a psicanálise. Ela nunca pensou no filme em relação com "Macunaíma", seja o livro de Mário de Andrade ou o filme de Joaquim Pedro de Andrade embora reconheça que as matutas, irrompendo nos bastidores do teatro, sejam "fúrias macunaímicas". Também diz que nunca pensou em Como Era Gostoso o Meu Francês, de Nelson Pereira dos Santos, mas considera engenhosíssima a leitura de "Amélia" como a antropofagia às avessas daquele clássico. Enquanto no filme de Nelson, os índios comem o Brasil para assimiliar sua força (depois de assimilarem suas técnicas de combate), em Amélia é a forasteira, a francesa, que devora as brasileiras e as incorpora ao seu coro - no desfecho memorável do filme.
Liberada, Ana Carolina pretende substituir a analisanda meio furiosa pela contadora de histórias. Quer fazer um documentário sobre Gregório de Matos, porque admira o poeta, mas sabe que talvez esteja comprando uma briga. "Vou fazer um filme de 40 minutos para exibir não sei onde", diz. "Vou gastar, sei lá, R$ 100 mil para fazer um filme que depois as redes de TV vão querer comprar por R$ 3 mil." Outro projeto é um filme sobre homens. Depois de psicanalisar-se (e psicanalisar as mulheres), Ana quer voltar-se para o universo masculino. Só espera que não sejam necessários outros dez anos para concretizar esse novo e, vindo dela, atraente projeto. O mais surpreendente é a revelação que faz - a primeira montagem de Amélia tinha mais de três horas. Ana mostrou o filme nos EUA a alguns gringos que atuam na indústria cinematográfica. Eles acharam muita coisa redundante. Ana começou a cortar. Desconstruiu o filme na montagem, enxugou-o completamente. Deu certo. Ficou muito bom.(Luiz Carlos Merten/Agência Estado)
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