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"O Auto da Compadecida", obra de Suassuna, sai da TV para o cinema
Foi o evento do ano passado na TV- a microssérie O Auto da Compadecida, que Guel Arraes adaptou da peça de Ariano Suassuna, ganhou todos os prêmios da crítica e teve altos índices de audiência. Guel fez a série pensando em versões diferenciadas para televisão e cinema. "O Auto" chega agora às telas de 60 cinemas do País. Estréia em São Paulo, no Rio e no Norte-Nordeste, a região Sul fica para depois. Basicamente, é o mesmo produto da TV, mas remontado. Guel cortou uma hora da microssérie, ela ganhou partitura especial para cinema. O resultado é bom.
Em entrevista, o diretor disse que não demorou mais do que uma tarde para reeditar "O Auto" da TV. Foram cinco horas de trabalho, o que prova como Guel já tinha o novo produto na cabeça. Ele cortou basicamente cenas do começo. Considerava mais difícil, para a compreensão da história, se cortasse do fim, que leva ao julgamento no céu. E não teve, realmente, muita dificuldade, porque quando escreveu o roteiro da microssérie com João Falcão e Adriana Falcão, o trio já pensava na adaptação para o cinema. Tanto isso é verdade que Guel empenhou-se em registrar as cenas em filme de 35 milímetros, o que encareceu um pouco a produção, mas já deixou pronto o produto filme. Cenas como a do enterro da cachorra e o gato que defeca dinheiro podiam ser facilmente aceitas pelo telespectador porque iam ao ar em dias diferentes. Na versão cinematográfica, pareceriam redundantes. Cortar é optar, Guel sabe disso. Cortou com vistas à eficiência do relato do cinema.
É a terceira versão "audiovisual" da peça. "O Auto" foi adaptado para o cinema por George Jonas nos anos 60. Apesar de um elaborado tratamento da cor e da cenografia, "A Compadecida", com Antônio Fagundes e a jovem Regina Duarte (que ainda não era nem namoradinha do Brasil), não foi exatamente um sucesso. Nos 80, nova adaptação, desta vez feita por Roberto Farias e com o trapalhão Renato Aragão no papel de João Grilo. A terceira versão é, de longe, a melhor, embora possa despertar polêmica. Afinal, é cinema ou TV? É cinema por ser apresentada no suporte, claro, mas certos recursos cenográficos são marcadamente televisivos. Todas as lorotas de Chicó, quando visualizadas, evidenciam a origem na TV, mas o próprio Guel pode defender-se dizendo que esse tipo de artifício cênico também era a marca de um mestre, Federico Fellini, que nunca precisou mais do que montes de celofane para sugerir o mar. Guel, aliás, assume que seu cinema tem algo de felliniano.
Desde que "O Auto" surgiu nos anos 50, Suassuna já foi definido como um arqueólogo solitário que escava as bases de nossa cultura. E tem sido um intransigente defensor da cultura popular em oposição à globalizada produção artística em escala industrial. Dele, os críticos gostam de dizer que faz a ponte entre texto e música, sendo de ressaltar que foi o descobridor de Antônio Nóbrega, que se apresenta este fim de semana em São Paulo, também com uma proposta de cultura de raiz. Como Guel não abria mão de ter um romance na microssérie (e no filme), buscou-o em outro original de Suassuna ("A Tortura de um Coração"). E não dispensou a influência de Boccaccio, cujo "Decameron" inspira a história do morto que ressuscita.
O filme beneficia-se da alquimia entre Matheus Nachtergaele e Selton Melo, como João Grilo e Chicó. E emociona na curta participação de Fernanda Montenegro como Nossa Senhora - uma Nossa Senhora que Guel queria representar como uma mulher madura e não como a Virgem do culto católico. Muita gente gosta de comparar a esperteza de João Grilo ao herói sem caráter de Mário de Andrade, Macunaíma. O próprio Suassuna discorda. Acha que João Grilo tem todo o caráter do mundo e é isso que o leva a lutar contra todos, do patriarcado ao diabo. É um belo filme, e divertido.(Luiz Carlos Merten/Agência Estado)
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