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Comédia "A Primeira Noite da Mina Vida" fica entre Capra e Almodóvar
Há umas pitadas de Almodóvar em A Primeira Noite da Minha Vida, de Miguel Albaladejo, mas não em dose suficiente para fazer dele um filme brilhante. O longa faz parte da série 2000 Visto por..., encomendada pela rede francesa Arte para comemorar o réveillon do ano 2000 e da qual participaram vários cineastas, entre eles o americano Hal Hartley e o brasileiro Walter Salles (este com o excelente O Primeiro Dia).
Na história armada por Albaladejo, vários personagens, muitos dos quais não se conhecem entre si, confluem para se encontrar em uma trama comum. Um jovem casal, Manuel e Susana (que está grávida) se preparam para passar a noite de ano-novo na casa dos sogros. Ela é rica, ele um assistente social que não tem onde cair morto. Como não têm carro, o pai dela vai buscá-los em casa com sua vistosa Lancia italiana. Mas o genro é orgulhoso, e tomou emprestada a caminhonete capenga de um amigo. Desencontram-se, portanto. As tramas paralelas começam a evoluir. O pai de Susana é assaltado por uma dupla de pequenos bandidos. Duas frentistas são obrigadas a trabalhar durante a passagem do ano, e resolvem promover uma festinha particular no posto de gasolina. Um trio de turistas alemães, que não falam uma palavra de espanhol, chega a Madri. E uma garota de programas, cujo pai tornou-se mendigo, espera em vão pelo namorado. Fica surpresa quando se encontra com um homem mais velho, que precisa telefonar porque teve seu carro roubado.
As histórias vão se fechando umas sobre as outras, e não se pode dizer que não existe talento na maneira como são costuradas sobre o tecido comum de uma Madri distante dos pontos turísticos e da badalação da "movida".
Assim como Walter Salles fez em O Primeiro Dia, também Albaladejo, em A Primeira Noite da Minha Vida procura promover o encontro entre classes sociais bem diferentes no quadro de uma passagem de ano tida como muito especial. É quando tudo parece meio artificial, as realidades cotidianas suspensas, ou colocadas num parêntese provisório, como numa espécie de carnaval onírico. Salles optou por um caminho, Albaladejo por outro, diametralmente oposto. O brasileiro procurou mostrar a radical impossibilidade de encontro entre classes sociais, mesmo numa situação de confraternização como a do ano-novo. O espanhol preferiu uma comédia à la Frank Capra, humana, sensível, mas ainda assim bastante fantasiosa quanto à sua concepção e conseqüências.
Ok, realismo não é obrigatório. Pode ser dispensável, e, em certos casos, até indesejável. Portanto, Albaladejo tem todo o direito de construir a sua fábula de fim de ano como bem entender. Parece, às vezes, mesmo uma fábula natalina, talvez pela proximidade entre as datas; talvez porque os bons sentimentos associados à comemoração de nascimento de Jesus caiam melhor para os propósitos do diretor. É como se diz: Natal é festa para a família; ano-novo é festa mundana. E O Primeiro Dia da Minha Vida é uma fábula estritamente familiar. Fala de conflitos que no fim se apaziguam, de encontro entre classes sociais aparentemente estanques e avessas umas às outras, de sentimentos bons. Fala também de um nascimento, que não se dá numa manjedoura, mas quase isso. Enfim, o Natal imprega a historieta inventada por Albaladejo de uma ponta a outra.
Daí que a inicial inspiração almodovariana acaba ficando deslocada, porque parece menos uma necessidade estética do que simplesmente um maneirismo - já devidamente assimilado por um cinema espanhol que se quer "moderno". Isto é, libertário quanto aos usos e costumes, aberto a certo destempero formal e em flerte constante com o melodrama temperado pela comédia. Falta a essência da coisa: a radicalidade mental que dá a forma - e o fundo - aos grandes filmes de Pedro Almodóvar.(Luiz Zanin Oricchio/ Agência Estado)
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