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"As
Coisas Simples da Vida" faturou prêmio de Melhor Direção
em Cannes
Parece ser
uma vocação. O cinema asiático conjuga hoje gêneros, mas é especialmente sensível
aos dramas contemporâneos do cotidiano, sob uma visão reflexiva. Ao menos é nesse
escopo que vêm trabalhando os nomes mais badalados. O circuito brasileiro já admira
Tsai Ming-liang, Hou Hsiao-Hsien e Wong Kar-wai, os dois primeiros representantes
de Taiwan e o último de Hong Kong. Na lista de tão difícil pronúncia é obrigatório
um quarto integrante a partir de hoje. Trata-se de Edward Yang, outro cineasta
radicado em Taiwan, e, como os colegas, dono daquela virtude de falar sobre o
seu lugar como espelho do mundo. É o que ele faz em As Coisas Simples da Vida,
título irônico para o complexo painel de aflições que montou em três horas de
fita. Complexo e corriqueiro ao mesmo tempo.
Essa pode ser a definição genérica para o cinema produzido pelos talentosos nomes
dessa espécie de nouvelle vague asiática - mas cada um faz a seu modo. Ming-liang,
por exemplo, adota o inusitado como ponto de partida para flagrar vidas em desespero,
a lembrar a dor de pescoço que une pai e filho em <i>O Rio</i> e a
rivalidade e redenção entre vizinhos causada por um buraco no teto, situação que
batiza o filme <I>O Buraco</i>. Hsiao-Hsien e Kar-wai podem variar
seu material, mas costumam contemplar a juventude marginal, o segundo mais esteta
que o primeiro. Yang aponta para um universo reconhecível ao grande público. Também
ambicioso. Seu cinema vai à família, mas o tema pode ser facilmente ampliado para
uma classe média em crise.
Daí
a aparente simplicidade desse painel, que logo se mostra intricado, com gosto
de tragédia. Não por acaso, Yang optou por um formato cíclico. O filme abre com
um casamento e fecha com um funeral. A noiva está grávida e é ponto de discórdia,
pois acabou afastando o marido de sua ex-amante. Traída, a moça dá um escândalo
na festa. O prenúncio da morte vem com um enfarte da matriarca, a avó do noivo,
logo após a cerimônia. Estão lançados, assim, a base dramática e o desafio ao
espectador: nada até aqui parece indicar um roteiro instigante.
E, de uma certa forma, não será até o final. Para admirar Yang, é preciso condenar
todo o espectro do que se convencionou chamar cinema pelas normas de Hollywood.
O cineasta de Taiwan tem estilo e tempo próprios, o que equivale ao oposto da
linguagem americana de circuito comercial. Nem por isso é mais radical que Ming-liang
ou seus colegas. É possível dizer que Yang é mesmo convencional no formato e no
universo em que filma; mas é exigente na compreensão e no envolvimento que pede
do espectador. Afinal, este logo reconhecerá o princípio, digamos, vulgar que
rege a vida de seus personagens e precisará atenção para encontrar as sutilezas.
Visto o casamento e o colapso da avó, passa-se aos demais componentes e histórias
da trama. Elas vão se desdobrando, a partir da chegada da matriarca, em coma,
à casa da família da filha (Elaine Jin). Esta pede a todos que passem algum tempo
conversando com a mãe, para que ela acorde mais rápido. O mais reticente é o neto
pequeno, Yang-Yang (Jonathan Chang), óbvio alter ego do diretor que duplicou seu
sobrenome no personagem e os olhos que conduzirão o espectador. Sua irmã, a tímida
adolescente Ting-Ting (Kelly Lee), também se mostra impotente perante a doença
da avó e preferirá a companhia da liberal amiga e vizinha. O namorado desta será
outra ponta da trama. O círculo familiar se fecha com o melancólico pai (Wu Nienjen),
um executivo da área da informática, em crise na empresa que pode quebrar, em
casa com a mulher frustrada e, suprema dor, com o reaparecimento de seu grande
amor de escola.
A
vida como ela é: casamentos mal estruturados, crises românticas, existenciais
ou financeiras, a descoberta do mundo e do desejo. Na moderna Taipei, Yang elege
uma classe média que ascendeu com o 'boom' da economia asiática e começa a sentir
os primeiros efeitos da derrocada. Não pinta um quadro coletivo de desesperança,
mas individual. Isto já está contido no título em chinês: 'Yi Yi' é a repetição
de 'um' e simboliza a individualidade. O diretor acolhe uma família mas não a
vislumbra como tal; aparentemente unida, ela se desagrega nos problemas de cada
integrante. Em última análise, não deixa de ser um contraponto à crença da forte
ligação aos valores familiares da cultura oriental. Eles são renovados, como numa
redenção, no emocionante discurso final do menino.
Mais uma vez, como na vida, nem todos os personagens são passíveis de redenção.
A nova chance não virá, por exemplo, para o pai que vai passar um fim de semana
com a paixão de escola. O espectador fica sabendo desses e de outros fracassos
quase sempre por um recurso de imagem belíssimo: a câmera busca os personagens
pelo exterior dos cenários, ocultando-os atrás de vidros e seus reflexos. É o
caso de uma das cenas mais primorosas, quando a mesma mulher sacrificada pela
decisão do pai põe-se a chorar no quarto de hotel.
Um efeito que se presta ao conceito fundamental do filme. Yang acredita que seus
personagens constroem um destino frustrante por não conseguir enxergar o mundo
na totalidade. O menino Yang-Yang, filósofo precoce, questiona o pai sobre a impossibilidade
de uma pessoa se ver por inteiro. Portanto, precisa de uma outra para mostrar
como ela é por trás. Brinca, então, com uma pequena câmera a fotografar todos
de costas. É uma tocante homenagem ao significado da imagem e o que ela pode trazer
de fundamental, de transgressora, mas também de superficialidade.
Gazeta Mercantil
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