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Bertolucci está de volta com "Assédio"
Como prólogo para uma história de amor, Bernardo Bertolucci não poderia ter escolhido cenas mais incômodas. As primeiras seqüências de Assédio (Besieged) são feitas na África, onde Shandurai (Thandie Newton) trabalha com crianças deficientes. Um verdadeiro pátio do milagres. Nada é dito. Mas faculta-se à imaginação supor que algumas daquelas crianças foram vítimas de minas ou algum outro subproduto de guerra tribal. Vive-se uma ditadura, o que não chega a ser incomum. O marido de Shandurai é professor e, nota-se, constesta o regime. Sob as vistas da mulher, é retirado brutalmente da sala de aula e os militares o levam para lugar ignorado, porém presumível.
Depois do prólogo, o que se vê é Shandurai em Roma, vivendo num cubículo, ganhando a vida como faxineira e estudando medicina. Uma lutadora. Deixou a África e transformou-se em mais uma imigrante na não tão receptiva Itália. Ela trabalha na casa de um pianista tímido chamado Kinsky (David Thewlis). O músico se apaixona pela africana e aparentemente não recua quando fica sabendo que ela é casada, o marido está preso na África e corre risco de vida. Bem, esse é o enredo.
O restante é Bertolucci em boa forma, relembrando ao espectador porque ele deve ser considerado um grande cineasta, mesmo quando o retrospecto recente não o favorece. Seu talento é reconhecível quando aproxima a câmera das pessoas e a movimenta de modo a criar um clima emocional. No começo, é um cantor africano, que parece transmitir com sua voz toda a dor do continente. Depois as cenas com as crianças deficientes e em seguida a brutalidade policial. O ritmo com que são mostradas faz o espectador respirar a violência.
Em seguida, o estilo é mais contido, quando se passa do Terceiro para o Primeiro Mundo. A Roma dos tons ocres, mas também dos desvãos, dos bairros pobres, de uma Itália que vem se tornando multirracial contra a vontade, com certo atraso em relação à França, onde o fenômeno já se completou. Esse é o Bertolucci político, que aparece sob o manto inocente de uma história de amor meio desesperada e mesclada a um ato de generosidade. O autor de "Antes da Revolução", "O Conformista", "A Estratégia da Aranha", volta a observar seu país, mas agora sem discurso, sem ponto de vista firmado, sem ideologia. Mesmo porque ideologias estão arquivadas, pontos de vista foram abalados e discursos caíram de moda.
Desse modo, ele apenas observa a mudança na paisagem urbana, com os olhos simpáticos de quem conhece o que anda por trás das reivindicações de pureza étnica. Assim sendo, o caso de amor entre o pianista e a faxineira será também inter-racial, sem que nada nele pareça forçado como as cotas étnicas das produções de Hollywood, nas quais o politicamente correto não chega a disfarçar o racismo de base ou a má consciência. Uma bela história de amor que, se não chega nem de longe a ser convulsiva como a de "O Último Tango em Paris", mostra que Bertolucci está flexionando os músculos e talvez se prepare para algo maior. E mais radical.
(Luiz Zanin Oricchio/ Agência Estado)
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