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"As
Bodas" traz alegoria de um grande momento
Foi em 1988. A jovem
Vera sacudiu a então União Soviética e mostrou ao mundo um painel desolador
do país e da frustração de sua juventude. A protagonista de A Pequena
Vera, do diretor Vasily Pichul, ousava com a primeira cena de sexo
e drogas do cinema russo e se debatia com sua família de operários a partir
de uma gravidez inesperada.
Mais de uma década e algumas transformações políticas depois, Tania é
uma espécie de irmã caçula da jovem da pré-desintegração do bloco. Ou
seja, cresceu em outra fase política e econômica, conseqüência da abertura,
a chamada glasnost. Também jovem, Tania é a personagem de As Bodas,
do russo Pavel Lounguine.
Como se poderá ver a partir de hoje, ela tem mais liberdade, talvez até
pelo empenho de sua predecessora. Mas ainda enfrenta agruras. É mais uma
vez a Rússia atrasada e operária do interior que está em cena. Num vilarejo
de mineiros, Tania (a bela Maria Mironova) é considerada uma jovem perdida
e sente isso na pele quando volta de Moscou, onde era modelo. Vem com
um objetivo bem definido: casar com o menino que amou na infância e assim
renovar sua vida. O garoto agora é o rapagão Mishka (Marat Basharov),
tipo boa-praça que depende do mísero salário da mina. Nem titubeia com
a proposta dela, para desgosto da família. Em parte.
O avô é ranzinza, mas o pai, legítimo veterano do Partido Comunista e
trabalhador exemplar, logo vê a possibilidade de impressionar a comunidade
com uma grande festa. Falta dinheiro, no entanto, assim como para o noivo,
que não consegue um presente digno para seu amor. Entra em cena, então,
um amigo beberrão e chegado a pequenas falcatruas, o que dará início a
uma série de mal-entendidos. Impossível não lembrar da dupla Paulo Goulart
e Gianfrancesco Guarnieri, este um noivo atormentado pelo mesmo motivo
no dia de seu casamento em O Grande Momento, o maravilhoso filme
de Roberto Santos. Mas como no título brasileiro, tudo se ajeita e começa
a festa.
E é esse também o grande momento do filme de Lounguine. A celebração se
dá sob uma aparente sensação de felicidade, com o banquete e a música
correndo soltas. O drama individual, no entanto, vai aos poucos se sobrepondo
à catarse coletiva. A noiva tenta confessar algo ao marido, mas este,
antevendo um ponto negro do passado recente, não deixa. O espectador é
conduzido a imaginar uma relação mal explicada entre ela e o empresário
local. O dono da mina e representante da nova riqueza do país foi o responsável
pela carreira de Tania como modelo. Cobra dela a volta ao lar. Vem a explicação.
Eram amantes, mas ela não sabia que o mecenas era casado.
As Bodas chega a ser burlesco em seu humor baseado em situações esdrúxulas
e tipos até mesmo clichês, como o policial corrupto, amigo dos poderosos
e irascível com o proletariado. Mas antes de forçar um tom apelativo,
o diretor demonstra claramente que o encontrou num país de identidade
confusa, estagnado como se fosse num vácuo, sem saber se resguarda seu
passado e suas tradições ou assume a crise inevitável. O choque entre
a jovem que aspirou a uma vida, digamos, cosmopolita e a comunidade que
parou no tempo é a evidente alegoria de uma Rússia que pretendeu alçar
ao mundo capitalista e entrou em descompasso.
Lounguine não é exatamente um desconhecido por aqui. Seu filme Taxi
Blues rendeu a ele o prêmio de melhor diretor em Cannes, em 1990.
Foi exibido em mostras e no circuito alternativo brasileiro. Dava conta,
assim como quase todos os seus títulos, da visão de uma sociedade em frangalhos,
destinada a sempre soçobrar nas idas e vindas das correntes políticas
e econômicas. Era assim com o taxista que penava com um amigo recente
atrevido, um músico que depois ganhava fama e voltava triunfante.
Ou em Luna Park, o líder de uma gangue de skinheads, dedicado a
reviver os ideais da Revolução, que deve reencontrar um pai nunca antes
sabido, judeu nostálgico da velha Rússia. São todos encontros conflituosos,
que chegam a um denominador comum pela via pessoal, seja no amor ou na
amizade, nunca no contexto coletivo. Como a dizer que na crise de uma
nação, a saída é buscar socorro na realização individual, com o mais próximo.
É isso que Mishka logo enxerga ao aceitar Tania e seu passado obscuro.
Dele surge uma criança. É a comprovação final de que a vida pode continuar,
apesar dos esforços contrários de quem estabelece as regras. Vera não
tinha a opção da escolha. Tania tem algumas. Já é um consolo que o filme
de Lounguine oferece.(Orlando
Margarido- Investnews/Gazeta Mercantil)
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