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"A Camareira do Titanic" chega ao Brasil com três anos de atraso
Havia críticos em suspense, há três anos, à espera de que A Camareira do Titanic viesse naufragar nas telas brasileiras. O filme entra em cartaz no Brasil graças ao esforço da Pandora. O dono da distribuidora, André Sturm - responsável pelas reestréias dos clássicos de Federico Fellini, Luchino Visconti e Ingmar Bergman, obras cultuadas como A Doce Vida, Rocco e Seus Irmãos e Morangos Silvestres - nunca desistiu de trazer o filme de Bigas Luna para o Brasil. No início, era muito caro. Ele teve paciência de esperar. No intervalo ocorreu o fenômeno Titanic, de James Cameron. O espanhol Bigas Luna não pode ser acusado de ter pego carona no maior sucesso do cinema americano em todos os tempos. Ele já planejava sua "Camareira" enquanto Cameron ainda lutava para resolver os problemas financeiros de sua megaprodução. É possível que algumas pessoas torçam o nariz para a "Camareira". Quem se importa? Descubra você mesmo os encantos que o filme tem, indiscutivelmente.
Um dos maiores, senão o maior, atende pelo nome de Aitana Sánchez-Gijón, uma espanhola caliente que este ano foi jurada no Festival de Cannes. Aitana era sempre chamada de 'femme de chambre du Titanic' (a co-produção é francesa, de Daniel Toscan du Plantier). Rouba o filme, por mais que seus parceiros de elenco tenham estampa (caso de Olivier Martinez) ou talento (Romaine Bohringer).
Bigas Luna irrompeu no cinema espanhol com Pedro Almodóvar. Os críticos procuravam ver afinidades entre ambos. Eram autores "à margem". O tempo passou, Almodóvar evoluiu, amadureceu em sua arte - e no mesmo ano da "Camareira" fez o deslumbrante Carne Trêmula. Bigas Luna foi ficando para trás. Parecia condenado ao escracho de Jamón, Jamón e Ovos de Ouro, para citar apenas dois filmes numa galeria em que a sutileza não é exatamente o forte. A surpresa é constatar que o diretor é capaz de sutilezas inesperadas. Na história, Olivier Martinez é operária numa fundição. Há anos ganha o prêmio da firma para o vencedor de uma corrida entre os funcionários. O prêmio, quando o filme começa, é ir a Southampton para assistir ao lançamento do Titanic ao mar. Martinez ganha a passagem, a estadia no hotel. Mal chegou e batem à sua porta. É Aitana, que se apresenta como Marie, a camareira do Titanic. Não tem onde passar a noite. Cavalheirescamente, Martinez cede-lhe o leito e vai dormir no sofá. De madrugada, Aitana o chama para partilhar o leito com ele. Ficam os dois deitados lado a lado. Não rola nada, mas Martinez fica tão fascinado pela mulher que leva uma foto dela para sua cidade.
Os amigos descobrem, não acreditam quando Martinez diz que foi para a cama com a deusa sem fazer amor com ela. Surge a notícia do naufrágio, Marie é dada como morta. Pressionado pelos amigos, Martinez começa a contar lorotas - tece histórias sobre como possuiu a camareira, de todas as formas, numa noite inesquecível. A essa altura, sua ligação com a mulher já entrou em parafuso, pois ela, ao saber da trama, não acredita que Martinez não tenha consumado sua noite de loucuras e ele também fica mordido pelas histórias que os amigos lhe contam, de que ela teria ido para a cama com o patrão para garantir a promoção do amante. Martinez envolve platéias cada vez maiores. Vira ator num teatro ambulante, no qual é apresentado como o sobrevivente do Titanic.
É um filme delicado, envolvente, intimista. Pode ser definido como um estudo sobre a função do imaginário no amor. O risco é que, em tempos de aids, Bigas Luna fosse fazer um filme sobre o sexo imaginado e, portanto, seguro como substituto do sexo real. Ele não cai na cilada. O sexo imaginado é tempero para o amor. A própria Marie, quando ressurge (e como ressurge), não deixa de ser tocada pela fantasia do amante que não foi.
O filme situa-se entre os planos do real e do imaginário. E só funciona porque o espectador embarca na trama refinada e emocionante sobre a arte e o engenho do narrador, esse equivalente masculino de Xerazade. No fundo, ao criar o personagem do narrador encantatório Bigas Luna talvez estivesse querendo falar sobre a própria função de narrador cinematográfico. Sem intelectualizar a ação, ele discute a função "emocional" e "cerebral" da arte. Pode ser discutido, mas tem encanto. E Aitana, como Penelope Cruz, defende com brio a graça e a sensualidade da mulher espanhola.(Agência Estado)
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