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Ang Lee usa
guerra civil como pano de fundo em "Cavalgada com o diabo"
Estréia nessa sexta-feira
Cavalgada com o Diabo, leitura da guerra civil que contrapôs sul e norte
dos Estados Unidos. Portanto, uma obra americana por excelência, um mergulho mais
profundo na história do que Tempestade de Gelo, crônica familiar que recuperava
a libertária década de 70.
Mas há muito em comum nesta fase recente do diretor Ang Lee. Antes de tudo,
a aparência enganadora de um realizador chinês que parece ter mudado para Hollywood
em busca de prestígio e dinheiro. Nada mais equivocado. Lee se formou em Taiwan,
mas depois foi estudar na New York University e na Tisch School. Conquistou lá
as condições iniciais para trabalhar e não por acaso, em seus dois primeiros filmes,
falou dos imigrantes orientais na nova terra, com problemas de identidade e no
relacionamento com os pais - em A Arte de Viver, na figura do sr. Chu,
que vem de Pequim em visita, depois no gay de O Banquete de Casamento,
que recebe a família em Nova York para um matrimônio montado. Não perdeu de vista,
portanto, a herança do Oriente e as questões que lhe interessavam.
É irônico
que tenha voltado a Taiwan, literalmente, em Comer, Beber, Viver, retomando
o sr. Chu como um viúvo às voltas com a independência das filhas e tornando o
filme a produção asiática mais vista até hoje na América. É essa habilidade em
manipular temas, não abandonar seu cinema pessoal e cativar as grandes platéias
que o faz caso único hoje no panorama mundial. Mesmo quando adapta um romance
de época. Com Razão e Sensibilidade, de Jane Austen, Lee ganhou o circuito
internacional.
Começava aqui a fase das grandes produções, à qual pertence Cavalgada com o
Diabo. Não é difícil imaginar o que interessou a Lee nessa série, digamos,
americanófila. No centro de todos os filmes está a discussão dos valores, das
regras sociais e familiares, suas falsidades e conveniências.
Em Cavalgada com o Diabo, essa análise é transferida para a segunda metade
do século XIX e ampliada na confusão de ideologias e modelos de condução de um
país em plena transformação. A Guerra de Secessão, como se sabe, é velho material
do cinema, romanceado como em ...E o Vento Levou até dramático e em reverso,
o caso de Tempo de Glória. Lee optou por fechar o foco num universo específico
do embate, o Meio-Oeste, a fronteira entre os Estados da Confederação, de latifundiários
e escravagistas, e o norte progressista.
Daí o dilema
vivido pelos protagonistas, meia dúzia de rebeldes que formaram uma unidade em
1862 e entraram na briga, aderindo ao sul. Deles, os amigos de infância e vizinhos
Jake (Tobey Maguire) e Jack (Skeet Ulrich), além de um escravo liberto
(Jeffrey Wright), se tornam líderes do drama e representam os princípios
que o diretor quer questionar. Moral, ética, fidelidade, propriedade e sentimentos
como amor e amizade se confundem na mente juvenil dos heróis. As provas estão
no front, mas também no meio familiar, a exemplo da indecisão de Jake em assumir
o filho (e a esposa, a cantora Jewel) do amigo morto.
Talvez seja o maior talento de Lee. Ele sabe investigar o caráter de seus personagens,
refletir suas contradições. Num painel em que as normas se confundem como nesta
guerra, não é pouco dar a dimensão exata de um país em clima de caos e apontar
como ele chegaria tempos depois a maior nação do mundo. Num texto para a publicidade
do filme, ele diz que acredita estar neste período os primeiros passos da "americanização"
do mundo, com as desvantagens que todos conhecem, mas também com valores como
a democracia. Tudo teria começado ali.
Mas seria
injusto enfeixar as qualidades da fita apenas numa visão política do diretor.
Ele também se mostra um grande realizador de aventuras. Mesmo quem considera o
assunto esgotado verá que o chinês fez um esforço digno de um nome originário
da América e está bem adaptado aos recursos de Hollywood. E tudo leva a crer que,
engenhoso que é, Lee tratou de levar o aprendizado de volta à esfera de suas tradições.
Gazeta
Mercantil
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