|
"Más Companhias" baseia-se em fato real
No início, Más Companhias, de Jean-Pierre Améris, parece mais um daqueles filmes destinados para adolescentes, nos quais nada de notável acontece, a não ser o registro da vida rebelde na transição da etapa infantil para a fase adulta, etc. Parece, mas não é, porque lá pela metade da história os personagens entram numa barra-pesada, que confere todo um outro sentido à trama. Apenas a título de informação: essa trama, embora ficcionada, baseia-se num fato da crônica policial de Grenoble. Aconteceu para valer, mostrando que a vida real às vezes é mais inventiva do que roteiristas em crise de invenção.
As personagens principais são duas garotas, Delphine (Maud Forget) e Olivia (Lou Doillon), que se conhecem na escola secundária. Temperamentos opostos. Até biótipos contrários. Olivia é alta como varapau; Delphine, mignon. Além de pequenina, tímida e inexperiente. Olivia é desenvolta, já teve vários namorados, veste-se de modo extravagante, costuma furtar objetos nas lojas. Má companhia, em suma. Depois, fica-se sabendo que Olivia procura ser clone de uma irmã que morreu jovem, uma rebelde sem causa que um belo dia se jogou do alto de um edifício.
É legal essa inversão de perspectivas, porque no início da história Delphine é a frágil e Olivia comanda. Depois, quando a situação ficar preta para o lado das duas, será Delphine a tomar a iniciativa, e Olivia irá apenas segui-la. Elas irão conhecer o caminho do fundo do poço quando começarem a namorar Alain (Maxime Mansion) e Laurent (Robinson Stevenin). Os dois são meio malandrinhos e sonham com uma viagem à Jamaica. Viagens custam dinheiro e eles não o têm. Dispõem apenas de duas garotas apaixonadas, imaginação fértil e poucos escrúpulos. No fogo dessa combinação explosiva cozinha-se o destino do quarteto.
O fait divers em si já tem interesse. Coloca em cena um processo de amadurecimento acelerado quando duas jovenzinhas são jogadas sem nenhuma preparação na brutalidade da vida. O fato de terem encontrado dois namorados de vocação criminal não refresca em nada. Desse tipo de vocação, parece dizer o filme, ninguém pode se sentir a salvo hoje em dia. Ela aparece numa periferia brasileira e também numa cidade razoavelmente pacata do interior de um país desenvolvido.
Em termos de linguagem, Más Companhias é um típico filme francês da fase mais recente. Há, ao que parece, toda uma preocupação no cinema feito na França de superar o rótulo intelectualista que o transformou em um estorvo para os exibidores. Os filmes se têm preocupado em ser simples, diretos, falando dos problemas do dia-a-dia, de gente comum. Ou, como é este caso, de gente comum em situação excepcional, como Delphine e Olivia. Tem sido um caminho para o cinema europeu mais recente - pelo menos aquele não diretamente dirigido ao público de festivais, mais receptivo a temas difíceis e inovações de linguagem. Esse cinema evita tanto o intelectualismo de diretores como Jean-Luc Godard ou Alain Resnais (a velha-guarda da nouvelle vague) quanto o escapismo de Hollywood. Busca o caminho do meio, no qual uma linguagem acessível pode ser usada para discutir temas importantes.
O de Más Companhias é um desses temas recorrentes: como educar adolescentes? Como, sem restringir demais a liberdade deles, evitar que entrem numa fria sem volta? Améris é suficientemente franco para admitir que não existem respostas para essas perguntas. E que viver é perigoso mesmo, como dizia um certo escritor chamado Guimarães Rosa e de quem certamente o francês nunca ouviu falar.
Tudo somado, a vida é uma aventura, às vezes de conseqüências terríveis. Há um pequeno refrigério, talvez, na maneira como a avó de Delphine a acolhe, no silêncio e na ignorância dos fatos, doando à neta apenas amor e compreensão. Às vezes é tudo o que se tem para oferecer. Pode não ser um substituto da segurança absoluta (que não existe), mas funciona como bálsamo.(Agência Estado)
|