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Tim Roth estréia na direção com o chocante "Zona de Conflito"
Filmes que contêm cenas muito chocantes tendem a ser julgados exclusivamente por elas. É o caso de Zona de Conflito, estréia na direção do ator britânico Tim Roth. Nesse drama familiar, há uma seqüência quase intolerável de incesto. Nada recomendável para quem for mais sensível. Constrangedora mesmo para quem estiver habituado a emoções hardcore.
Mas não convém tomar o todo pela parte. Não pelo menos nesse caso. Chocante que seja, a cena é tudo, menos gratuita. Ela funciona como a explosão de um sintoma de desordem familiar - este sim o tema focado com coragem e estilo por Roth. O eixo da narração passa pelo adolescente Tom (Freddie Cunliffe) que mora com sua família em Devon. A mãe (Tilda Swinton) está grávida e vai dar à luz logo na primeira parte do filme. Seu pai (Ray Winstone) é um tipo normal, embora pareça às vezes brusco demais. Tom tem uma irmã mais velha, Jessie (Lara Belmont), que há muito já descobriu a sexualidade e a exerce de modo mais ou menos ostensivo.
Há, logo no início da história, uma seqüência, que dita o clima do que virá a seguir. A mãe está na fase final da gravidez. A família mora num lugarejo isolado e sem assistência médica. De repente, ela percebe que a hora do parto chegou mais cedo do que previra. A família, pai, mãe e o casal de irmãos, embarca numa viagem de carro em busca de socorro. Tudo parece caótico no interior do veículo. A parturiente grita de dor, o pai se desespera, os adolescentes se agitam sem nenhum sentido. Para piorar o que já era um sonho mau, o carro se desgoverna e capota. Desastre. É só desastre o que se terá dali em diante.
E desastre narrado com frieza glacial. Cinema é estilo, modo de narrar, uma visão pessoal das coisas, uma assinatura. Tudo isso no melhor dos casos. Esperava-se que Roth, que já participou como ator em alguns filmes de ação (como Cães de Aluguel), preferisse alguma coisa mais ágil, mais sacudida. Nada disso. Vai contra o ritmo, como que preparando um suspense, uma experiência agônica para o espectador. Os planos são fixos ou longos, a fotografia insiste nos tons frios, neutros. Quase não há música. Há silêncios, ou ruídos naturais, os talheres contra um prato, os passos no chão de madeira, o rumor de um mar cinzento, que se adivinha inóspito. Tudo é opressão.
Ao mesmo tempo, Roth revela-se fino observador do desejo que pulsa nas pessoas, e ultrapassa os limites da família, mas às vezes se concentra nela. Como personagem, Tom é o observador, o voyeur nessa história de olhares. O garoto espinhudo luta com sua própria sexualidade. Observa a irmã, as amigas da irmã, a mãe que amamenta, o pai deitado com a mãe, o pai sozinho. Há um sutil jogo de olhares, que se cruzam e atingirá o clímax na cena do incesto, mas que se insinua ao longo de todo o filme. Na verdade, a trama toda é construída sobre a pulsão de ver, tão própria da sexualidade humana.
Por outro lado, Roth não se coloca de maneira neutra sobre o problema do abuso sexual na infância e na adolescência. Não é preciso ser panfletário para denunciar um crime, como ele demonstra amplamente. Basta mostrá-lo em toda a sua crueza, e nesse caso sem comentários ou atenuantes. É preciso apenas coragem moral para tocar num tabu e fazê-lo falar. No mundo do cinema, tão apertando por orçamentos e conveniências de mercado, pouca gente pode se dar ao luxo de exibir essa qualidade tão simples. Roth é, desde já, uma exceção.(Luiz Zanin Oricchio/ Agência Estado)
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