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Ruy Guerra faz de "Estorvo" um filme incômodo
Pode parecer inusitado e até surpreendente, mas Ruy Guerra confessa - ele também se incomoda com Estorvo, o filme que adaptou do livro de Chico Buarque de Holanda. É um filme difícil, incômodo. O próprio Guerra concorda. Mas é um filme que precisava ser feito e ele se orgulha de ser o autor. Uma obra radical, que retoma a chama das mais importantes de sua carreira - um filme transgressor como Os Cafajestes, politicamente forte como Os Fuzis. Um filme jovem, arrojado e corajoso em sua proposta, feito por um homem de mais de 60 anos. Existe salvação para o cinema, fora das fronteiras de Hollywood.
Guerra confessa o que o atraiu no livro de Chico - "Foi o olhar sobre o mal-estar moral e político da sociedade contemporânea, essa malaise que se acentuou com a derrocada das ideologias, mas também foi a questão da linguagem; uma, aliás, não exclui a outra." Para expressar a malaise, Chico criou um livro perturbador. Desde o início, o leitor é amarrado na paranóia do narrador e o segue em seus deslocamentos cegos - a cidade não tem nome, ninguém tem nome, só o narrador tem acesso a pequenas verdades que não revela. É uma metáfora do Brasil (e do mundo) contemporâneo.
A malaise, a preocupação com a linguagem, tudo isso atraiu Guerra, mas ele pescou em Chico outras preocupações que lhe são próprias - a maneira de jogar com o tempo, o exercício de fragmentação cênica, como forma de traduzir essa realidade. Estorvo saiu, assim, como um filme que faz justiça ao título - é um estorvo, mas certamente oferece densidades e sutilezas, além de prazeres estéticos que se fazem cada vez mais raros. Um desses prazeres é descobrir o brilhante trabalho do diretor de fotografia Marcelo Durst. É uma das mais belas e elaboradas fotografias do cinema nos últimos anos. Os grandes nomes de Hollywood deviam tomar lições com esse jovem de 30 e poucos anos.
Tantos elogios à fotografia de Estorvo mexem com os brios do diretor e o levam a fazer uma retificação. "Falam no Marcelo como sangue novo, como se a concepção visual do filme fosse dele." Guerra assume o conceito fotográfico de Estorvo. Acha que isso não desmerece em nada o trabalho de Marcelo Durst, pois ele queria uma determinada coisa e contou com o gênio de seu jovem fotógrafo para torná-la viável na tela. Guerra queria uma fotografia em cores que se assemelhasse ao preto-e-branco - Durst proporcionou-lhe os meios técnicos de fazê-lo. De resto, o conceito é todo dele - movimentação e marcação da câmera, lentes. Guerra conta que os planos foram milimetricamente planejados por ele. Durst executou-os - com raro brilho. Merece totalmente o Kikito que o filme ganhou no Festival de Gramado.
Guerra tem a experiência de haver trabalhado com grandes diretores de fotografia. Tony Rabatoni em "Os Cafajestes", Ricardo Aronovich em "Os Fuzis", Dib Lutfi em "Os Deuses e os Mortos". Sempre soube o que queria de cada um deles. Buscou Durst porque gostou de seu trabalho com Beto Brant e achou que ele seria capaz de realizar o que pretendia. Faz questão de dizer tudo isso não para desmerecer Durst, mas para restabelecer o que lhe é de fato e de direito - "Senão vão achar que eu não fiz nada", diz. "Discuto a linguagem em Estorvo e a linguagem do filme passa pelo enquadramento, pelo movimento de câmera; nada disso é acidental ou inventado na hora da filmagem; há um conceito no filme, o meu, que foi discutido com o Marcelo, que me trouxe as soluções práticas para os problemas que eu lhe apresentava e contribuiu com sua sensibilidade."
É um filme radical - pela fragmentação da narrativa, pela dramaturgia. Radical até na maneira como Guerra usa os sotaques, o que equivale a um risco - o filme poderá não ser entendido, no sentido auditivo, reabrindo a velha questão de que o som não é bom no cinema brasileiro. Guerra explica que no começo ia fazer o filme em co-produção com a Espanha. Veio daí a idéia de ter um ator de língua espanhola no papel principal. Inicialmente pensou em Antonio Banderas. Fixou-se em Jorge Perugorría, que fala um portunhol terrível, bastando lembrar o gigolô de "Navalha na Carne", de Neville D'Almeida. Guerra poderia ter resolvido o problema, já que se trata mesmo de um problema, dublando-o. É o que poderá ocorrer em Cuba, um dos parceiros do filme. Os cubanos já anunciaram que vão dublar Estorvo porque não entendem o que Perugorría diz. Guerra não se opõe, mas se deixou o filme assim é porque acha que, no mundo globalizado, línguas e sotaques se misturam.
Antinaturalismo
Até por causa disso, Estorvo passa um estranhamento, que é maior em razão da natureza do personagem. "Ele demora para se definir, há nele uma indiferença, um tanto faz; quando se define, deixa claro que o filme é débil como trama." Tudo isso incomoda, o próprio Guerra sente-se incomodado, mas o incômodo é essencial para transmitir uma certa reflexão. Guerra observa que o cinema atual se fechou numa linha narrativa clássica. "Hollywood só faz filmes baseada numa dramaturgia de causa e efeito, em que tudo é entregue explicadinho para o espectador." E acrescenta: "Fujo do naturalismo, que hoje é moeda corrente de um tipo massificado de produção." Sabe o risco. "O espectador vê os filmes comparando-os com a quilo a que está acostumado." Como não há nada, ultimamente, que se assemelhe a "Estorvo", aumenta o estranhamento. Guerra admite sua tristeza. "Esse é o tipo de filme que dá seqüência às pesquisas dos anos 60; fica claro o quanto perdemos, em termos de dramaturgia e linguagem, nos últimos anos."
Por isso mesmo, não teme admitir que saiu aborrecido do recente Festival de Gramado, onde Estorvo ganhou os prêmios de fotografia e música (para Egberto Gismonti). Acha esses prêmios justos e gostaria que outro Kikito fosse para a montagem de Mair Tavares, "um trabalho magnífico, considerando-se que o filme é todo fragmentado". Mas não teme dizer que esperava um prêmio para ele mesmo, para a sua ousadia.
Esclarece que a decepção não é puramente individual. "Faltou sensibilidade política do júri para o atual momento do cinema brasileiro", diz. E vai além - "Há hoje a idéia dominante de que os filmes devem ser feitos para o mercado, como se essa fosse a solução para todos os problemas do cinema no País." Guerra acha que não. "O mercado está formatado para o produto de Hollywood e seria uma besteira tentar fazer o tipo de filme anódino que eles fazem melhor." A força do cinema brasileiro está em ser um produto diferenciado - como Estorvo. Guerra admite sua satisfação por estar encontrando respaldo nos jovens. "Em Gramado, os jovens realizadores vinham todos me cumprimentar, entusiasmados não só com a forma, mas com a crítica que o filme contém."
Ele acredita no filme que fez. Considera Estorvo um filme de rompimento, uma peça de resistência, por seu corpo a corpo com a linguagem e a realidade. É uma forma de prosseguir e levar adiante a experiência de Chico, seu parceiro em peças e músicas, pois no "Estorvo" de Chico o romance é o texto e o texto é o personagem, sendo o personagem (Perugorría, no filme) um marginal por sua falta de vínculos. Guerra vê no seu filme a mesma placenta das obras que lhe parecem mais interessantes do cinema brasileiro atual -" Céu de Estrelas", "Baile Perfumado" e "Quase Nada", o novo Sérgio Rezende, que também concorreu em Gramado. Conclui que "Estorvo" é um filme que vai ficar. "A médio e longo prazos, acho que se vai pagar e ainda vai me proporcionar muita satisfação." (Agência Estado)
Assista à entrevista em vídeo com o diretor Ruy Guerra
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