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"A Humanidade" discute a essência do homem
Embora saiba que as pessoas querem valorizá-lo quando o comparam a Robert Bresson, Bruno Dumont incomoda-se com a comparação. Não quer ser o herdeiro do mestre francês que morreu, nonagenário, em dezembro passado. Sabe que eles compartilham temas e idéias - a incomunicabilidade como única forma de comunição, a graça como possibilidade de redenção do homem da sua miséria moral e física. Basta ver A Humanidade, que estréia amanhã para confirmá-lo. É outro raro e grande filme - o melhor de Dumont, mas cabe destacar que o anterior, A Vida de Jesus, também está de volta ao cartaz. O espectador dispõe, assim, de duas obras de um dos mais interessantes autores do cinema atual.
Desde que concorreu no Festival de Cannes do ano passado recebendo os prêmios do júri, de melhor ator (Emmanuel Schotté) e melhor atriz (Séverine Caneele), A Humanidade tem dividido as opiniões. Os críticos americanos acharam o filme original e ousado, como proposta estética, mas hollywoodianamente lamentaram o que chamaram de falta de história. Cahiers du Cinéma, uma das revistas especializadas mais influentes da França (e do mundo), publicou um texto chamado "Sem cauda nem cabeça". Não foi o título que desagradou a Dumont. "A crítica revela fixação pelo filme, o crítico não conseguiu se desvencilhar do objeto, mas não considero muito pertinente o que ele assinala", diz o diretor numa entrevista por telefone, de Paris, horas depois de chegar da Austrália. Acrescenta - "Uma crítica negativa pode ser mais interessante se for diretamente ao ponto e estimular o debate de idéias; faço cinema por isso, porque considero o filme um meio de expressão autoral."
Dumont veio da filosofia. Não hesita em definir A Humanidade como "metafísico" - "O que me interessa é discutir a verdade, a justiça, a essência do homem e esses temas são a matéria-prima da filosofia." Começou com filmes institucionais. Não seria o autor que é se não tivesse passado por essa experiência. Diz o que lhe interessa no cinema - "Não é um meio intelectual, por mais que os diretores franceses se esforcem para considerá-lo como tal." O que busca no cinema é o seu aspecto primeiro - "É uma arte selvagem, constrói-se nos embates do corpo, na relação com a natureza."
Foi assim que A Humanidade começou a tomar forma para ele. Como A Vida de Jesus, passa-se em Bailleul, cidade do interior da França onde Dumont nasceu (há 42 anos) e onde ainda vivem seus pais. Bailleul é a típica petite ville. As pessoas ainda pegam suas cadeiras para sentar e conversar em frente das casas. Um mundo à parte, senão exatamente parado no tempo e, por isso mesmo, Dumont cria em A Humanidade essas imagens que mostram o TGV, o trem que passa a toda velocidade, ou o avião supersônico que rasga o espaço. "Queria contrapor a técnica mais desenvolvida para dizer o que me interessa - o homem evolui, mas seus problemas continuam os mesmos, as pulsões são as mesmas."
A primeira imagem é chocante. O sexo dilacerado e sangrando de uma garota que foi estuprada e morta. O cinema americano talvez mostrasse o rosto da vítima ou desse um plano geral do corpo. Dumont filma o detalhe, o sexo. "É do que se trata; o horror do crime, nesse caso, é mostrar de que forma ele se produziu; não trapaceio com o espectador." A partir da morte desenvolve-se a enquete policial, levada pelo investigador Pharaon de Winter, interpretado por Emmanoel Schotté. Aqui, um parêntese. Winter foi um pintor famoso que viveu em Bailleul e aí produziu sua arte inimitável. Foi justamente esse "inimitável" que impulsionou Dumont a dar seu nome ao personagem.
Vem do filme anterior de Dumont a idéia desse personagem. Ela surgiu do interrogatório de Freddy pelo policial em A Vida de Jesus. Há na conversa deles um mal-estar, uma dificuldade de comunicação e expressão que tocou o diretor. "Quis saber mais sobre essas pessoas, quis retomar a conversa meio truncada sobre responsabilidade e compaixão." A Humanidade surgiu assim e, já que se trata de um policial, a opção por certos elementos do gênero foi uma conseqüência. Posto que se trata de um policial, era preciso um crime e uma investigação. Só que Dumont não trata nada disso "à americana". Diz: "Deformei, modifiquei o policial tradicional." Seu thriller é interiorizado, a ação e o suspense não são o mais importante, aliás, não são importantes. O que interessa é a natureza dos personagens - o rosto meio aparvalhado de Schotté, a sexualidade de Séverine Caneele.
Vontade
Para entender (ou explicar) Pharaon de Winter, os críticos, desde Cannes, têm recorrido a Schopenhauer e Dostoievski. Dumont assume a primeira influência, mas não tanto a segunda. Schopenhauer, Kant e Hegel são paixões desde os tempos da filosofia. Reconhece em Schopenhauer o filósofo do pessimismo, mas prefere destacar a metafísica da vontade como a base do seu pensamento filosófico (e o motivo pelo qual sua obra teve repercussão em Nietzsche e Freud, além de exercer considerável influência sobre a arte e a literatura). Dostoievski é outra paixão, mas ele não se considera à vontade quando se diz que Winter tem algo do idiota dostoievskiano ou de Raskolnikov - aquele "bandido metafísico" que constrói uma teia absurda de indagações sobre o valor da vida humana para acabar matando uma velhinha, convencido de que ela não merece viver, pois a mediocridade de sua vida é uma corrosão do espírito. Na verdade, o que exaspera um pouco Dumont é essa necessidade que as pessoas, os críticos, principalmente, têm de buscar aproximações, querer saber (ou estabelecer) quais são as fontes de referência ou influência. Ninguém diz, por exemplo, quem influenciou Bresson, mas todos gostam de dizer que Bresson o influenciou. "Bresson é um caso singular na história do cinema", ele diz. "Foi um cineasta inimitável, particular." Mas Dumont também quer ser um autor singular. Talvez seja pretensão, ele admite, mas Bresson morreu com mais de 90 anos e ele tem só 40 - "Ainda tenho muito para fazer e ousar."
A matéria literária o atrai - e muito. Dumont confessa que escreve seus roteiros como se fossem romances (o de A Humanidade foi publicado na França pela Editora Arte e também está na Internet, no site www.00h00.com). Esse extrato literário fornece ao filme sua dimensão mais desconcertante e perturbadora - Winter é culpado ou se sente responsável e assume sua culpa por compaixão? "Quem decide é o espectador, mas acho que a minha opinião é muito clara e também está expressa no filme", diz o diretor. Foram nove semanas de rodagem. Quem conhece Schotté sabe que o personagem é ele. Quer dizer, não é, mas o ator possui a mesma dificuldade de ser do seu personagem. Dumont partiu daí para dar a Winter sua feição definitiva.
Conta que Schotté não tinha experiência profissional, mas queria fazer o papel, sentia que podia fazê-lo. Rodou pouco - duas ou três tomadas de cada plano, o mínimo de preparação com o ator, para evitar o desgaste. "Buscávamos alguma coisa, ele eu; muitas cenas não deram certo e foram jogadas no lixo, mas quando ele encontrava o tom creio que foi maravilhoso." Dumont considera-se um corpo estranho no cinema francês atual. "Não faço parte da família", explica. Admira Alain Resnais, mas gosta é de Luis Buñuel, de Federico Fellini e Pier-Paolo Pasolini, esses autores que encararam o cinema na mesma perspectiva que ele - como um meio de expressão. Outros poderiam ser citados, mas são esses que Dumont admira como espectador de cinema.
Amanhã, quando seu filme estiver estreando em São Paulo, ele estará embarcando para os Estados Unidos. Vai fazer a pré-produção de seu novo filme, "End", o primeiro rodado fora da França (e longe de Bailleul). Uma co-produção americana, com uma grande estrela que o diretor ainda não pode anunciar. Dumont não teme ser cooptado pelo cinemão americano. Admite que "End" poderá marcar uma mudança de método e até de estilo para ele, pois os ambientes e personagens são diferentes e um filme, para passar a sua verdade, tem de ter raízes no universo enfocado. As mudanças não o assustam. Está sereno - "Tenho certeza de que a minha enquete pessoal vai continuar." Parafraseando Tancredi em "O Leopardo", o livro de Giuseppe Tommaso di Lampedusa e o clássico de Luchino Visconti, poderia dizer que muda para permanecer o mesmo.(Agência Estado)
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