|
A emoção é o mais belo efeito em "Luna Papa"
Na overdose que é a programação da Mostra Internacional de Cinema sempre passam despercebidos filmes importantes. Nem o público nem os críticos conseguem dar conta de 200 filmes em duas semanas. Um dos injustiçados deste ano entra em cartaz. Não perca Luna Papa, de Bakhtiar Khudojnazarov. É um diretor ainda jovem (nasceu em 1965) do Tadjiquistão.
Depois que o império soviético se esfacelou, a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deu origem a diversos países. O Tadjiquistão é um deles. É considerado a mais pobre das ex-repúblicas soviéticas. A maior parte do seu território fica acima dos 3 mil metros de altitude, com picos que ultrapassam os 7 mil metros. A população vive nos vales cortados por rios caudalosos. Khudojnazarov traz para a tela imagens dessa república na Ásia Central. E não deixa de usar a história de uma família para metaforizar a situação da Rússia atual.
É um universo tão primitivo como aquele que Nikita Mikhalkov revelou em Urga. Um mundo à beira do caos. Lei e ordem não existem no vilarejo próximo a Samarcanda. A autoridade é representada por sobreviventes da guerra no Afeganistão, ex-militares que passeiam pelas ruas (e estradas poeirentas) num tanque. É nesse quadro que começa a história de Mamlakat. A garota de 17 anos quer ser atriz. É órfã de mãe. O pai, Safar, cria coelhos, e o irmão, Nasredin, ficou retardado por causa da explosão de uma bomba. Mamlakat tenta de todas as formas proteger o irmão. É seduzida, numa noite de lua, por um desconhecido que afirma ser ator. Ele some. O pai e o irmão caem na estrada atrás do sedutor. Querem que ele repare o mal que causou casando-se com Mamlakat. A repressora população da cidade discrimina a garota, chamando-a de prostituta.
Nas relações que se estabelecem entre os três personagens - e aqueles que eles encontram ao invadir teatros - pode-se ver (ou ler) uma tentativa de interpretação da situação atual do Tadjiquistão. A mãe Rússia morreu, a autoridade é instável e não consegue se impor, os órfãos da tempestade são duramente atingidos - a garota, violada numa cena extraordinária em que o deslizamento da queda é metáfora dentro da metáfora, o irmão, idiotizado pela guerra (e pelas circunstâncias históricas).
Há mais personagens - um aviador que lança um touro do céu, como choviam sapos em Magnólia, de Paul Thomas Anderson o médico (falso? verdadeiro?) que compra sangue e perde dinheiro nas cartas. Um e outro tentam assumir o filho de Mamlakat, mas a narrativa toma sempre rumos inesperados que atiram Luna Papa nas vertentes do surrealismo. E não se pode esquecer que os tadjiques descendem dos invasores persas. Conservam muitos de seus costumes, o que às vezes dá a impressão de que o espectador está vendo um filme iraniano mais exuberante.
Khudojnazarov estudou direção em Moscou, no tempo em que a escola VGK era prestigiada. Fez alguns curtas, sendo o mais famoso deles Believe It or not ("Acredite ou não"), de 1989. Quatro anos mais tarde, com seu segundo longa, Kosh ba Kosh, foi premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza e com o Grande Prêmio do Festival de Friburgo. O que mais impressiona em Luna Papa, mais até do que esse olhar sobre um mundo fraturado, é a força da imaginação visual do diretor. Há algo de Federico Fellini nessa capacidade que Khudojnazarov tem de criar beleza por meio de imagens insólitas ou, pelo menos estranhas. Fellini, sim, mas principalmente Emir Kusturica, que parece ser a grande fonte de referência e inspiração de Khudojnazarov. A terra devastada de Luna Papa evoca a guerra de Underground (que, no Brasil, se chamou "Mentiras de Guerra"). Os cavalos em disparada, o avião em vôos rasantes, a coloração da água, do céu, tudo é diferente.
O surrealista André Breton dizia que a beleza tem de ser convulsiva ou não é (beleza). Essa mesma idéia da beleza convulsiva anima e percorre Luna Papa. Uma das cenas mais belas do cinema nos últimos tempos, bela a triste, de cortar o coração, é quando o pai desesperado abraça os filhos - o doente, sem remédio, a garota, seduzida e abandonada. São unidos pela desgraça e os filhos são seu tesouro. A narrativa torna-se cada vez mais surreal, à medida que o filme avança. O desfecho é fantástico - a maneira como Nasredin corta as amarras para que Mamlakat possa voar, em busca da realização de seus sonhos.
Anos atrás, fez muito sucesso no Ocidente uma comédia de Amy Heckerling (Olha Quem Está Falando) sobre um bebê falante. O narrador de Luna Papa é o bebê que ainda está no ventre da mãe. Toda a história é contada por ele, o que aumenta ainda mais o clima de magia desse filme que talvez não se dirija a todos os paladares, mas com certeza tem atrativos para aqueles que querem ser maravilhados no cinema por outro tipo de efeito que não aqueles especiais desenvolvidos por Hollywood.
A emoção é o mais belo efeito de Luna Papa. O próprio Khudojnazarov resume suas intenções. Diz que que seu filme é a história de amor de um pai por seu filho, de um homem por uma mulher, de Ícaro pelo sol e de Mamlakat pela lua, como representação do pai. É um poeta que toca o universal falando de sua aldeia, uma idéia que os russos vêm perfeccionando desde Tolstoi.(Luiz Carlos Merten/ Agência Estado)
|