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Philip Kaufman traz aos cinemas os "Contos Proibidos do Marquês de Sade"



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A personalidade é conflitante e por isso mesmo predestinada a evocações de tempos em tempos. Sobre o Marquês de Sade já se debruçaram nomes da literatura como Antonin Artaud, Nietzsche, Simone de Beauvoir, Octavio Paz e mais recentemente Camile Paglia; o teatro lembrou o libertino em peças como Marat/Sade, de Peter Weiss, texto que também o empurrou para o cinema numa das melhores construções do universo sádico, na adaptação de Peter Brook de 1966. Há outras e famosas incursões, como a de Luis Buñuel em L'Age d'Or e de Pasolini e seu Saló ou os 120 Dias de Sodoma, ambos sobre o mesmo livro, 120 Dias de Sodoma. É na esfera cinematográfica que habitualmente se dá seu retorno.

Um deles acontece agora, com a estréia hoje do filme de Philip Kaufman. Chama-se Contos Proibidos do Marquês de Sade e tem status de grande produção, ao contrário da versão do francês Benoît Jacquot, apresentada no último Festival de Veneza. Como também parece predestinado, nenhum dá conta por completo do gênio incômodo. Antes, o compartimenta, num destino de incompreendido. Não é uma visão contemporânea não compreender Donatien-Aldonze-François de Sade, nascido em 1740 e morto num asilo de loucos em 1814. Quando Brook, Kaufman e Jacquot fazem uma opção por um período da conturbada vida do escritor, estão apenas reiterando a dificuldade própria do momento em que ele viveu e foi duramente condenado. Não estaria aí, pois, o questionamento mais sério a se fazer em relação às suas obras.

Há até uma certa semelhança no fio condutor das narrativas, que mesmo ao capturarem anos diferentes da trajetória de Sade acabam iluminando fatos iguais e recorrentes de sua biografia. Assim, o homem sentenciado a viver em prisões, hospitais e asilos pelo acaso de ter uma mulher devotada - e não ser levado à guilhotina em pleno terrorismo pós-Revolução Francesa - assume seus intentos de uma ou outra forma, encenando peças com os loucos ou editando clandestinamente seus escritos. É na escolha da personalidade de Sade e suas nuances que começa o conflito. Philip Kaufman fez a sua de forma radical. Jacquot preferiu um meio-tom, um consenso do que já se tem como usual, sem perder a idéia do mito.

Defesa do personagem

O primeiro tem Geoffrey Rush (o premiado ator de Shine, Brilhante) a defender o personagem; o segundo, Daniel Auteuil, também grande, senão o melhor intérprete de sua geração. Não é o caso de compará-los: ambos se prestam muito bem ao tipo. Auteuil é elegante, dotado de fina ironia, mas paga um preço pela frieza da concepção de Jacquot - mais habituado a produções francesas de época - num filme sobre Sade em que não há sadismo. O público brasileiro poderá conhecer a versão, em data de estréia ainda não confirmada. É Rush que a partir de hoje sustenta o mais novo Sade nas telas. Ele tem a face moldada para as intenções do diretor. É extravagante, delirante, cínico, enfim, está sempre no extremo do que se imagina ligado ao mito.

Talvez por isso carregue uma impressão de folclórico por toda a fita. A trama tem fonte definida. Trata-se da peça Quills - nome original do filme -, de Doug Wright, roteirista responsável pela adaptação. Ele enfeixou seu interesse pelo autor nos últimos 14 anos da vida dele, quando Sade esteve internado no asilo de Charenton. Na cronologia, o momento vem na seqüência do cenário do filme de Jacquot, quando confinado numa mansão tornada prisão testemunha condenações à guilhotina. Também ali está seu trabalho com o teatro, mas a intenção é refletir o processo da revolução pelos olhos do autor e sua posição frente a ela, um dos capítulos mais discutidos de sua biografia.

Esse painel histórico parece fazer falta no filme de Kaufman. Ele é um diretor que assumidamente se interessa pelo amor nos limites, em sua concepção mais libertária e provocativa, a lembrar a adaptação de A Insustentável Leveza do Ser e a versão para o relacionamento de Henry Miller e Anaïs Nin em 'Henry e June'. Não seria irônico dizer que ele alcançava ali o sofrimento sádico dos personagens de ambas as histórias. Achou esse mesmo veio no texto teatral, que aponta como principal mote do período de Sade em Charenton sua aproximação de uma doméstica (Kate Winslet), misto de musa, aprendiz e salvadora. Pois é ela quem encaminha os escritos para fora do asilo, permitindo sua edição. Sade já tinha grande parte de sua obra publicada - 120 Dias de Sodoma, A Filosofia na Alcova - quando assinou ali sua sentença definitiva com Justine.

Clandestinidade

Sade rodou Paris clandestinamente e acabou nas mãos de Napoleão. É quando têm início os conflitos mais agudos do filme. O imperador ordena que um médico do regime 'cure' o prisioneiro de suas perversões. Royer-Collard (Michael Caine) é um adepto de drásticas medidas como a tortura e rivaliza com as novas propostas do padre responsável pelo asilo (Joaquin Phoenix), protetor de Sade. A teia dramática está formada, com direito a subtramas dignas da fantasia sádica, como o amor entre a empregada e o padre e as realizações na cama do doutor e sua virginal esposa.

Kaufman talvez não possa ser questionado pela opção de buscar tal período da vida de Sade nem a proposta de apresentar um personagem no limite do exagero. Deve ser cobrado, isso sim, de ceder facilmente às tentações mais comuns quando se cerca a vida do autor. Há um conveniente caminho a seguir que transforma seu universo numa rede de personagens e acontecimentos esdrúxulos, a lembrar atrações apelativas de circo, como a justificar que ele chegou à libertinagem, derrubou virtudes e costumes e se tornou um pervertido porque foi forjado por essa convivência
.

Qualquer tentativa de definir taxativamente as razões da filosofia de Sade, os teóricos o sabem, é temerosa. E Kaufman talvez só se salve de tal destino porque a tantas inverte o jogo e passa a iluminar mais as mentes que sofreram a influência do autor, no caso o padre e a jovem musa. Não deixa de ter coragem no exame dessa influência. Impõe uma cena de necrofilia no mínimo rara no cinema, e muito mais num filme também de intenções comerciais. Não vai, claro, ao limite de Pasolini, com suas perversões e escatologias para Saló que desafiam até hoje olhos e estômagos mais sensíveis. O Sade de Pasolini tinha status político e servia à metáfora de uma Itália que parecia guinar novamente ao fascismo. Desassociado de um objetivo, um painel histórico, um argumento de cunho artístico, o autor pode se transformar em alegoria e parecer tão artificial e imaginário como num conto de fadas. Se até isso Hollywood consegue, é melhor banir Sade e deixá-lo na obscuridade.


Gazeta Mercantil



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Assista ao trailer do filme



 








CONTOS PROIBIDOS DO MARQUÊS DE SADE

Título Original: Quills
País de Origem: EUA
Ano:
2000

Duração: 123 min
Diretor: Philip Kaufman
Elenco: Geoffrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix, Michael Caine, Billie Whitelaw, Patrick Malahide, Amelia Warner










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