Busca

Pressione "Enter"

 

 

Envie comentários e sugestões Cobertura completa Sites de cinema Grupos de discussão Colunistas Os melhores filmes Notas dos filmes Todos os filmes Roteiro de cinema O que está passando no Brasil

"Traffic" traz o bom vício da ambigüidade



Se você já viu esse filme, dê sua nota:



É tentador qualificar Traffic como uma daquelas obras que se inscrevem como renovadoras do cinema, se não em sua compreensão mais ampla, ao menos no território de Hollywood, o que para boa parte do público dá na mesma. O novo filme de Steven Soderbergh que estréia hoje tem status e pretensão para tanto. Mexe com as estruturas e, diga-se logo, é muito bom.

Congrega tema e formato no mínimo fora do esquadro mais popular da produção de entretenimento. A temática: o mundo das drogas visto em todo o ciclo, dos produtores ao consumidor final. A forma: um painel de três histórias interligadas por personagens contrastantes mas sugados pelo mesmo destino. Com esta criação que descende diretamente da linhagem de Robert Altman, Soderbergh quebrou a banca com um inesperado reconhecimento da indústria. Ganhou cinco indicações ao Oscar: filme, direção, edição, roteiro adaptado e ator coadjuvante para Benicio Del Toro. Nisso seria possível comprovar uma renovação.

Antes de tudo, renovação da carreira do diretor. Nunca é demais lembrar. O americano Soderbergh fez fama aos 26 anos com Sexo, mentiras e videotape. Foi o estreante mais jovem a conquistar a Palma de Ouro em Cannes. Viveu emparedado pelo sucesso. Foram dez filmes desde então, incluindo Traffic. Mas há dois lados nessa verdade. Ele nunca foi tão incompetente que não merecesse leitura por vezes elogiosa, nem tão brilhante que se revelasse superior ao início precoce. Daí ser preciso ampliar o panorama para dimensionar Traffic.

E nada melhor que lançar mão de outro parâmetro e de mesma fonte. O filme anterior do cineasta está em voga. Erin Brockovich, veículo para Julia Roberts exercitar algo mais que carisma e seus grandes lábios, também busca sua estatueta na festa da Academia, indicado nas categorias de melhor atriz, filme, direção e roteiro original. Ou seja, Soderbergh concorre consigo mesmo e poderá ser celebrado ou se autoderrotar. É mais provável que conquiste o tributo que cabe a Traffic. Ambíguo, o cineasta se mostra em faces diferentes, como aliás é multifacetado o seu cinema.

Ambigüidade talvez seja a única relação a ser feita em todos os títulos da carreira de Soderbergh e é, dentro e fora das telas, sua marca registrada. Por trás das câmeras, ele não possui um norte temático. Vai do amadurecimento de um adolescente nos anos de depressão americana em O Inventor de Ilusões ao estigma do machismo na comédia romântica Irresistível Paixão. Embaralha também referências, da influência de um John Cassavetes a Orson Welles, e vai e volta no elástico conceito de produção independente e comercial. Confirmam isso, mais uma vez, os dois últimos títulos de sua lavra. Mas talvez tal característica ambígua, a que mais interessa, esteja realmente enfronhada como recurso de dramaturgia. E aí sim um realizador original se expõe em plena forma.

Para ficar nos mesmos exemplos. Julia Roberts abre Erin Brockovich numa sucessão de incidentes que levam o espectador a ficar desnorteado quanto a um registro imediato da personagem. Esse perfil ainda será transformado algumas vezes. É um confronto com o que Hollywood tem de mais freqüente em suas produções, a apreensão rápida de uma personalidade e a imediata identificação por parte do público.

Traffic
não trai essa vocação de Soderbergh. Pelo contrário, a evidencia e trabalha com ela em ebulição, ao camuflar os perfis e as intenções em jogo. É essa hábil manipulação que faz o filme seguir em ritmo surpreendente até o final, mesmo que muitas das situações sejam reconhecíveis e recorrentes do cinema. A abertura é sintomática. Numa estrada empoeirada do deserto, um carro é parado para o que parece ser uma vistoria. Dois homens requisitam um pedágio ao motorista. Benicio Del Toro é um deles. Logo se pensa na figura do policial corrupto. Ao sugerir a gorjeta, acabam por capturar um carregamento de cocaína. Mais adiante, ambos também serão surpreendidos. Levará algum tempo até que o espectador saiba que cartas jogam os amigos. Não basta constatar que Del Toro é mesmo um homem da lei. Mas na fronteira entre México e Califórnia essa também é uma definição complexa.

Como serão outras. Michael Douglas nunca foi tão ele mesmo - de um executivo predador em Wall Street à presa em Proposta Indecente. Cai como uma luva a esse registro de "wasp" (o americano branco bem-nascido) o cargo de responsável nacional pelo combate às drogas nomeado pela Casa Branca. Recrutado, seu personagem passa a conhecer a burocracia e as medidas assépticas tomadas no escritório.

Conhece também algumas verdades que desmoronam seu lar classe média. Sua filha adolescente (Erika Christensen) adora festinhas de embalo com os amigos, onde a cocaína, a heroína e outros acessórios batem com freqüência. Seria de se esperar uma atitude mais profissional de um conhecedor. Mas o pai tomado de supresa é tão inapto quanto qualquer outro. Pior, a crise se estende ao casamento (sua esposa é vivida por Amy Irving). Quando a mulher cobra a presença de pai, uma sentença soa como navalha para homem tão enquadrado: "Tomo dois goles de scotch para não me aborrecer todos os dias."

Você, por certo, já viu isso antes. Mas nunca com a coragem, franqueza e rudeza que Soderbergh tenta exprimir dentro das fronteiras possíveis da moldura hollywoodiana. Sim, porque o cineasta não perde de vista o triunfo que tem nas mãos. Tocar num assunto tão pouco palatável e polêmico, que não desce bem junto com a pipoca com manteiga, caberia ao velho esquema da seara independente que o diretor conhece e parece cada vez menos disposto a retomar. Nem sempre se vê tão explicitamente nas telas comerciais a bula, digamos, dos métodos de utilização das drogas, como praticados pela filha do líder antitráfico. Não por acaso, os grandes estúdios recusaram o roteiro. Ou seja, sua conquista também é louvável nesse sentido e a intenção foi endossada por astros como Douglas e uma infinita lista de créditos de nomes veteranos ou em ascensão.

No mais, não são todos que ousam tirar o glamour de Catherine Zeta-Jones, a senhora Douglas, inchada por uma gravidez real. Ela é a terceira ponta do pesadelo e talvez a personagem que melhor sintetize as qualidades de dissimulação perpetradas pelo diretor. Dona de casa milionária, mulher de um magnata que é exemplo na comunidade, ela assiste à derrocada da família quando o marido vai preso por comandar um dos principais cartéis de distribuição. Deixa claro que não quer voltar à miséria e assume os negócios.

É uma reviravolta maravilhosa, mais uma vez, justificável por vários ângulos, da mãe que protege a cria, da esposa fiel e mantenedora do lar. Ou um simples caso de adaptação a um novo modo de ganhar a vida.

É um painel à americana, que se vale pouco de uma frustração geracional e se fixa num problema prático, embora possam se encontrar arestas misturadas ao prin-cipal. É o caso, por exemplo, da questão da fronteira mexicana, na dualidade de cultura e perda de identidade representada pelo idioma duplo do personagem interpretado por Benicio Del Toro, o mexicano que vive com um pé lá e outro cá, e terá uma dura decisão final a tomar.

Soderbergh não chegou sozinho a esse mundo. Traffic é baseado em "Traffik", minissérie da televisão inglesa produzida em 1989 e dirigida por Alastair Reid, o adaptador também de "Tales of the City". O mesmo roteirista da série, Simon Moore, assina a adaptação para o cinema.

Para contornar expectativas mais filosóficas, o cinema americano apresentou recentemente craques no molde da desilusão contemporânea, sendo o principal Paul Thomas Anderson com seu belo Magnólia. Num contexto mais alegórico e superficial, Sam Mendes pintou um retrato da crise familiar em Beleza Americana. A pedofilia ganhava ares de vício maldito, mas quase novelesco, influência talvez do patrocinador Steven Spielberg. Beleza Americana foi a grande sensação do Oscar do ano passado, o que prova também que os membros da Academia têm lá suas ambigüidades, contradições mesmo. A nova obra de Soderbergh tem a estatura incômoda que no passado recente seria rejeitada. Na noite de 25 de março, poderá até haver marmelada, prato típico servido na grande festa. Mas só por estar no banquete, Traffic já cumpriu papel mais do que transformador.(Orlando Margarido - Investnews/Gazeta Mercantil)





Procure na sua cidade

Veja trailer do filme



 








TRAFFIC

Título Original: Traffic
País de Origem: Alemanha/ EUA
Ano:
2000
Duração: 147 min

Diretor: Steven Soderbergh
Elenco: Michael Douglas, Don Cheadle, Benicio Del Toro, Luis Guzmán, Dennis Quaid, Catherine Zeta-Jones, Steven Bauer










Copyright© 1996 - 2003 Terra Networks, S.A. Todos os direitos reservados. All rights reserved..