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Takeshi Kitano deixa a violência de lado em "Verão Feliz"
Tanta violência, mas também tanta ternura. Era a fórmula de Mário Faustino, adotada por Gláuber Rocha em Terra em Transe, mas que poderia perfeitamente servir de divisa aos filmes de Takeshi Kitano. Estes são quase sempre formados por uma mescla bem dosada entre aquilo que leva o homem para o abismo e o que o redime do caos. Amor ao lado da morte. A exceção é este Verão Feliz, que parece trabalhar apenas com um dos termos da costumeira equação de segundo grau de Kitano.
De fato, há muita ternura e (quase) nenhuma violência nessa história do adulto que se encarrega de guiar um garoto de 9 anos ao encontro da mãe. Kitano, em pessoa, interpreta Kikujiro, meio marginal, meio boa-praça, que precisa de dinheiro e então aceita a missão de conduzir o garoto pelo interior do Japão. Como o adulto é um estróina, acaba gastando o dinheiro, o que coloca a dupla em dificuldades. Para o menino, Masao, é uma excelente oportunidade de se divertir, com situações que, de outra forma, não viveria.
Pode apostar em corridas de cavalos, dormir ao relento, promover trapalhadas em um hotel cinco-estrelas. E correr o risco de ser molestado por um velhote tarado, entre outros apuros. Bem, o filme tem mesmo esse tom, que lembra o de uma comédia pastelão, muito mais para Os Trapalhões que para Irmãos Marx. É que Kikujiro precisa fazer qualquer coisa para alegrar o menino triste que conduz numa busca sem grandes perspectivas. Faz-se de palhaço para consolar o menino. E não se pode dizer que não tenha êxito.
Poderia ser apenas uma comédia, inspirada aqui, levemente desajeitada ali, ingênua quase todo o tempo. Isso na superfície das coisas. Mas Verão Feliz tira mesmo sua força é de outra parte. Filia-se àquele tipo de filme que faz de um deslocamento geográfico uma viagem iniciática. Não raro, os viajantes são adultos e crianças, que interagem e se influenciam reciprocamente. Como não pensar, por exemplo, em Central do Brasil, de Walter Salles, Paisagem na Neblina, de Theo Angelopoulos, Ladrões de Crianças, de Gianni Amelio?
Esses filmes - e muitos outros - descrevem viagens que não implicam apenas deslocamento físico, mas mudanças substanciais nos personagens envolvidos. Aliás, é uma antiga mitologia, essa a da transformação pela viagem. Ulisses, quando retorna à sua Ática natal, não a reencontra como a deixou. O tempo tudo mudou, o que remete também a Heráclito - não se banha duas vezes no mesmo rio, porque o rio é diferente e porque a pessoa também já não é a mesma. Ulisses encontra uma Ática mudada, mas ele também não é o mesmo que partiu anos antes.
Em Central do Brasil, o garoto modifica a experiência de vida de Dora, a mulher endurecida e materialista. Em Ladrões de Crianças, o soldado que conduz os dois irmãos pequenos conhece uma Itália que ele mal intuía no começo. Paisagem na Neblina vê o casal de irmãos amadurecer pelo rápido e duro contato com um meio hostil. Em todos esses filmes falta o pai. No de Walter é justamente a busca do pai que motiva a viagem. Em Amelio são órfãos à procura de uma família, ou de um abrigo. Em Angelopoulos, mais uma vez é o pai imaginado, que, contra toda a evidência, as crianças ainda acreditam que esteja vivo.
São, todos eles, filmes complexos, que trabalham com sentimentos ancestrais, ocultos pela simplicidade aparente das obras. Daí, talvez, o poder de comoção que esses filmes mostraram diante de platéias muitas vezes refratárias, mas que acabaram por se render ao seu encanto. Parecem tocar em algum ponto sensível do inconsciente humano. Por isso, apesar de sua singeleza, de sua ingenuidade mesmo, produzem efeito emocional tão significativo.
Nesse sentido, Verão Feliz é um exemplo ainda mais interessante. Comparado aos filmes de Salles, Amelio e Angelopoulos, ele parece tosco demais. É apenas nas entrelinhas que se deixa ver. Naquele jeito seco de Kikujiro, levando o garoto pela mão e lhe ensinando o caminho das pedras sem parecer dar muita importância ao que acontece. Ou dizendo seu nome, pelo primeira e única vez na história, quando se despede de Masao. Representa o pai, não tanto fisicamente, mas naquilo que este depende de uma função simbólica, como o apoio, o guia e o amor desinteressado. Por isso funciona.
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