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"A Vida Sobre a Terra" lança olhar africano sobre o próximo milênio
Na véspera do ano 2000, Abderrahmane Sissako, um cineasta da Mauritânia que vive na França, retorna a Sokolo, uma pequena vila em Mali, para reencontrar o pai. Não será uma viagem feliz - dias antes, em uma carta, confessara uma desilusão antecipada, pois esperava encontrar a mesma situação de abandono. A tristeza com o imobilismo africano contrastando com a dor do exílio é o tema de A Vida sobre a Terra, dirigido pelo próprio Sissako e representante da África na série O Ano 2000 Visto por..., que também estréia amanhã (01). E, como os demais oito filmes da série, não esconde um certo pessimismo em relação ao próximo milênio.
Dentre todos, porém, seu projeto se revelou o mais atípico - sem roteiro, o filme é produzido enquanto feito. A situação de exilado foi a justificativa. "Nem sempre esse caminho é válido, mas, nesse caso particular, estando em Paris, tornou-se claro para mim que, se eu inventasse algo, me distanciaria da verdade e que a realidade de todo dia seria muito mais forte que qualquer coisa imaginada", disse, durante entrevista para o lançamento do filme.
Sissako partiu, então, em suas próprias palavras, "na direção em que o constrangimento me empurrava": nada de roteiro uma equipe pequena, horários apertados de filmagem. A única referência era uma viagem de visita ao pai - o passo seguinte era completamente desconhecido. Assim, ao chegar à aldeia, o diretor troca de roupa, pega uma bicicleta e vagueia pelas ruas e campos. Cada encontro dramático era ditado pelo acaso e, alguns momentos, revelaram-se felizes.
Encontro casual
Como a entrada em cena de Nana, uma jovem que está de passagem. Algo de sutil e cheio de vida surge entre eles. "Foi totalmente casual porque ela entrou de bicicleta em uma locação", conta Sissako, que esteve no Brasil no ano passado, para o Festival do Rio. "Antes disso, o personagem não existia; havia uma vaga idéia de que haveria uma mulher, nada mais que isso."
Um dos principais exemplos do atraso social e econômico que castiga a região é também responsável pelos momentos mais incômodos do filme: o problema no uso das comunicações. Em uma vila completamente isolada, completar uma ligação telefônica com a França, por exemplo, é motivo de comemoração. "Como os próprios personagens do filme dizem, "comunicação é uma questão de sorte": às vezes funciona, outras vezes não", observa Sissako.
Mais importante que a mensagem em si é o ato de querer se comunicar, a tentativa de se chegar ao outro. É o que demonstram os personagens, insistentes nos berros ao telefone, buscando uma resposta. "Mesmo que o outro não ouça nada porque a comunicação é ruim, ele fica sabendo que, em um certo momento do dia, alguém tentou falar com ele." O isolamento só não é completo graças ao rádio, mesmo que suas emissões em nada interfiram na rotina da aldeia.
"O rádio, na África, é um companheiro", conta o diretor. "A gente escuta sem ouvir, ouve sem escutar; às vezes, é só um meio de se mostrar moderno: a aldeia não está distante do mundo, mas em comunicação pelas ondas do rádio." O aparelho também pouco serve para situar as pessoas no tempo, pois os dias se repetem ao longo dos anos. "Pertenço a uma cultura na qual somente com 15 anos aprendi que tinha nascido em um dia 13 de outubro", lembra. "Isso quer dizer que, na África, as datas têm outro valor; temos uma percepção diferente do tempo."
A tentativa de animar uma discussão no filme está na mensagem política, que pontua diversos momentos. Sissako faz várias citações da obra de Aimé Césaire, um escritor engajado. "O filme não é dirigido a ocidentais ou europeus de hoje, mas simplesmente a todos", explica. "Não vejo como posso ser contemporâneo e positivo se começo falando em culpa; isso deve ser evitado."
Filme de imagens extasiantes e um fino humor sobre a paralisia degradante de uma aldeia africana às portas do ano 2000, "A Vida sobre a Terra" foi premiado, no ano passado, com o Golden Spire, no Festival de São Francisco, além de selecionado para a quinzena dos realizadores do Festival de Cannes, em 1998.(Agência Estado)
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