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OS DESAJUSTADOS (The Misfits)

de John Huston

John Huston, em 1960, quando rodou "Os desajustados", já havia realizado "Relíquia macabra", "O tesouro de Sierra Madre", "Uma aventura na África" e "Moby Dick", todos clássicos, todos filmes de boa bilheteria. Ela tinha, portanto, cacife suficiente para reunir um elenco estrelar para uma história que parecia ser um verdadeiro veneno de bilheteria: mulher urbana, ingênua e desiludida conhece caubóis rudes e mais desiludidos ainda. Huston sabia que, comercialmente falando, tratava-se de uma aposta perdida desde o início. Mas ele adorava blefar.

Tanto quanto Arthur Miller, marido de Marilyn Monroe na época, que escreveu o roteiro perfeito para o maior símbolo sexual que Hollywood já criara mostrar uma face que nem todos gostam de ver. Uma mulher frágil, pequena, desamparada, quase patética. Os três homens que contracenam com ela (estou falando dos atores e também dos personagens) são igualmente extraordinários: Clark Gable, envelhecido, tentando bancar o durão, sem muito sucesso; Eli Wallach, um aviador tímido, tentando bancar o aventureiro, com menos sucesso ainda; e Montgmomery Clift, protótipo de herói do velho oeste até no nome, caindo de cavalos e touros, tão decadente quanto todos os outros. Os três, mais Marilyn Monroe e Thelma Ritter, passam o filme bebendo e tentando se divertir, mas nem isso conseguem.

John Huston, mais uma vez, retira de seu elenco desempenhos que estão além da simples "interpretação de um papel". Os personagens de Monroe e Gable são, cada um a seu modo, espelhos dos próprios atores. Os últimos espelhos que criaram. Monroe (que morreria em 1962, de overdose), um pouco gorda, já usava e abusava de tranqüilizantes, às vezes misturados com álcool. Gable (que morreria no final de 1960, de enfarto), já dava sinais de cansaço, e seu sorriso de galã, algumas vezes, era quase uma caricatura de si mesmo. É incrível a coragem de Arthur Miller de retratar, num roteiro que foi parcialmente escrito durante as filmagens, o desespero da mulher que amava e de um grande herói romântico, que já perdera quase todo seu encanto. Por isso, "Os desajustados" é um dos filmes mais melancólicos da história do cinema, ao mesmo tempo que apresenta ao espectador um realismo cru, selvagem, em que os grande horizontes do deserto de Nevada não significam mais caminhos abertos, e sim a solidão inevitável de todos os seres humanos frente a um mundo que transformam e civilizam, mas não compreendem.

A grande cena final, em que os três caubóis vão laçar "mustangs" (cavalos selvagens) no deserto é de arrepiar. Huston descreve cada etapa da aventura: primeiro o avião localiza os cavalos e os remete na direção dos caçadores; depois, usando um caminhão, os cavalos são perseguidos, laçados e amarrados a um pneu (procedimento que lembra a pesca de baleias em "Moby Dick"); finalmente, os cavalos, já extenuados, devem ser derrubados e amarrados. Tudo isso para quê? Num western tradicional, provavelmente seriam adestrados para virar montaria. Mas, em "Os desajustados", o objetivo é vendê-los para comerciantes da região, que vão matá-los imediatamente e transformá-los em comida para cães e gatos.

Uma das características mais marcantes de Huston era justamente oferecer ao espectador toda a glória da aventura, do prazer de uma vida sem os freios da civilização, para logo depois demonstrar, sem dó nem piedade, que essa glória e esse prazer não existem mais. Ou talvez só existam quando idealizados, nunca na realidade. Em "Os desajustados", Huston brinca com as velhas fórmulas do "herói americano indômito" e depois as sepulta bem fundo. Isso dói, companheiro. E isso não costuma agradar ao público, vide "O portal do paraíso", de Michael Cimino, que anda mais ou menos pelo mesma trilha.

Além de ver "Os desajustados" em vídeo, é bom também dar uma olhada em "Magnum Cinema - histórias de cinema pelos fotógrafos da Magnum", editado no Brasil pela Nova Fronteira, com textos de Alain Bergala, que possui várias fotos das filmagens dos "Os desajustados" (a mais famosa delas, de Monroe no deserto, está na capa do livro). Eve Arnold, Bruce Davidson e Cartier-Bresson, entre outros fotógrafos talentosos, produziram um material fora do comum, que é um documento emocionante e amargo sobre o mundo do cinema. Fotos de homens e mulheres que fazem de suas vidas uma sucessão de mentiras bem contadas, apoiadas por imagens e sons que, quando manipuladas por um diretor como Huston, são fragmentos dolorosos da realidade mais real que um homem jamais viveu.


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Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e "Fausto"). Atualmente finaliza seu terceiro longa-metragem, Tolerância, com Maitê Proença e Roberto Bomtempo.

 

 

 

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