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'Estorvo', baseado no livro de Chico Buarque, é o representante oficial do Brasil em Cannes

Jorge Perugorría faz o papel principal em "Estorvo", de Ruy Guerra

Todos foram levar seu abraço a Ruy Guerra no sábado de manhã, no Espaço Unibanco de Cinema, quando foi realizada uma sessão especial, para poucos convidados, do filme "Estorvo". Cacá foi como amigo. Marisa, além de amiga, capta recursos para dois filmes que o diretor pretende realizar: um é a adaptação do romance "Quase Memória", de Carlos Heitor Cony, o outro, a chamar-se "Três por Quatro", será a terceira parte da trilogia que começou com "Os Fuzis", prosseguiu com "A Queda" e agora poderá mostrar o mesmo personagem ingressando no século 21.

"Estorvo" é o representante oficial do Brasil no 53.º Festival de Cannes. Guerra é um veterano de Cannes. Participou várias vezes do festival, em praticamente todas as mostras, da competição aos eventos paralelos. Antes de "Estorvo", havia concorrido pela última vez com "Kuarup". Guerra está muito contente de voltar à competição justamente com "Estorvo". "É um filme contra a corrente", explica. Acha importante uma vitrine como Cannes. "Hoje em dia o mainstream hollywoodiano domina o mercado de forma avassaladora; é bom que exista um espaço como Cannes para mostrar esse tipo diferenciado de criação artística".

Quando o livro de Chico Buarque de Hollanda surgiu foi considerado um evento na literatura brasileira do começo dos anos 90. Mas não foram poucos os que advertiram que o título do livro tinha valor de advertência - "Estorvo" incomoda, para dizer-se o mínimo. Guerra trouxe o livro para a tela. Seu filme incomoda também e, para quem se acostumou às narrativas tradicionais, com início, meio e fim, será quase intolerável. Sua preocupação, já que se trata de um livro difícil, é a de não ter feito um filme hermético. "Você achou hermético? Não é hermético, não é?", pergunta. Difícil, sim, exigente, com certeza. Hermético, não.

Parceiros no teatro e na música (diversas canções, Ópera do Malandro e Calabar, o Elogio da Traição), não surpreende ver justamente Ruy Guerra adaptar "Estorvo" para o cinema. Mas Guerra conta que, inicialmente, não pensou em fazer a adaptação. Ele estava em Cuba, como professor da Escola de Cinema e Televisão de San Carlos de Los BaÏos, quando leu o original. Ainda não era o livro impresso. Tempos depois, conseguiu de Chico uma opção - quatro meses num corpo-a-corpo solitário com o livro, para ver se dele era possível extrair um filme. Definido o roteiro, não foi fácil montar a produção.

"Estorvo", da produtora Skylight (de Bruno Stroppiana) foi feito com recursos do Brasil, de Cuba e Portugal. A rigor, não conta propriamente uma história. Ou melhor, o desafio de Guerra foi retirar uma história do livro que, na verdade, é um fluxo de tempo, um exercício de memória e imaginação, vivido por um personagem em estado de excitação psicológica a partir do momento em que é despertado do sono por um toque estridente da campainha. Há uma vaga trama policial. Nada concreto. Os personagens não têm nome - são apenas "eu", "minha irmã", "minha mãe". Passa-se numa cidade de geografia imprecisa. Pode ser o Rio, mas não tem nome. Guerra filmou no Brasil e em Cuba, misturou as geografias. Não é um filme que se pretenda concreto. É, antes, um pesadelo.

Som - Cacá disse a Guerra no fim da sessão: "Você fez um filme sobre o tempo". O diretor concorda. Ele ainda não tem distanciamento para falar sobre o filme. Viu-o quatro vezes, duas em cópias de trabalho, a terceira numa cópia que ainda tinha problemas, a sessão de sábado foi a primeira em que viu o filme pronto, definitivo, como será visto pela platéia em Cannes. A única ressalva que Guerra faz se refere ao som. "Com aquele som maravilhoso do palácio do festival vai ser outra coisa, com certeza".

As pesquisas de tempo, os limites entre realidade e imaginação atraíram-no imediatamente no livro. "São coisas que têm a ver comigo, preocupações que eu também tenho em quase tudo o que tenho feito ultimamente". Partindo desses elementos, ele define o filme como um exercício de linguagem. Ousou bastante - na estrutura narrativa e audiovisual. A fotografia e câmera são de Marcelo Durst, um jovem ("30 e poucos anos", diz Guerra) que também fotografou para Beto Brant.

O diretor sabia o que queria fazer: um filme de câmera nervosa, que substituísse os cortes pelo efeito de chicote. Um filme colorido sem cor. "O Bruno (Stroppiana) quando soube disso me propôs - por que não fazemos em preto-e-branco?", conta Guerra. Ele descartou: "Já é um filme difícil, se fosse feito em preto-e-branco ia ser condenado ao gueto". Conduzido por Guerra, Durst oferece um trabalho no mínimo impressionante. As cores são pouco saturadas, tendem ao preto-e-branco. Um efeito de laboratório baixou ainda mais a resolução. "Filmamos sempre contra a luz", lembra o diretor, que sabia estar jogando uma cartada ousada com o elaborado visual de "Estorvo". A trilha de Egberto Gismonti contribui para o estranhamento. "Egberto é maravilhoso", resume Guerra. A partir de suas conversas com o diretor, ele percebeu que Guerra não queria música no sentido tradicional. Queria um trilha à base de ruídos sonoridades. "Ah, então você não quer música?", perguntou o compositor, sintetizando a intenção do cineasta. Embora ainda não tenha distanciamento para falar sobre o filme, Guerra admite estar muito satisfeito. "Acho que é o filme que me deixou mais satisfeito, num período assim curto, mas eu só vou saber com certeza o que penso de "Estorvo" daqui a uns dez anos". Quando anunciou que ia fazer o filme, ele chegou a dar entrevistas dizendo que Antonio Banderas seria o protagonista. "Mas logo ele estourou nos Estados Unidos e isso me dificultou bastante as coisas", conta Guerra. Por conta da agenda do ator, ele chegou a retardar o filme em mais de um ano.

Quando desistiu de Banderas, já havia embarcado na co-produção com Cuba. Jorge Perugorría surgiu como a solução natural. Guerra confessa que lhe incomodava, em Perugorría, o mesmo problema que verificava em Banderas: "São homens muito bonitos". Vencida essa resistência, só tem elogios para o ator de "Estorvo". Acha que o filme ficou melhor com ele. Tanto Guerra quanto o produtor Bruno Stroppiana sabem que não fizeram um filme popular, capaz de sonhar com grandes platéias. É aí que entra a vitrine de Cannes para ajudar a dar visibilidade a "Estorvo".

Guerra vai submeter o filme à apreciação da crítica mundial, do júri. "Se vencer numa dessas instâncias já estarei satisfeito; se vencer, nas duas, melhor ainda", afirma. E a instância do público? "Aí não ouso nem sonhar", confessa. A audácia tem seu preço e Guerra sabe que não pode contar com um estouro popular. A razão lhe diz isso, mas, no fundo, ele também gostaria de fazer sucesso de público trabalhando num registro difícil e exigente como é a proposta de "Estorvo".
(Agência Estado)



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