A programação da terceira noite competitiva do Festival de Gramado foi considerada interessante pelo público presente. O primeiro longa-metragem, Santitos, do mexicano Alejandro Springall, seduziu a platéia com seu tom levemente nostálgico e barroco. O segundo, Estorvo, de Ruy Guerra, não deixou de surpreender. Houve quem profetizasse uma debandada geral do público. Afinal, quando o filme (que não é nem um pouco fácil) começou a ser projetado já passavam das 23h30. Lá fora, um frio glacial havia descido sobre Gramado, convidando mais ao vinho, à fondue e à cama do que a uma árdua reflexão sobre a paranóia contemporânea. No entanto, boa parte da platéia ficou, assistiu ao trabalho de Ruy com respeito, e aplaudiu no final. Para quem estava acostumado a associar Gramado a futilidade, essa reação não deixa de ser uma boa surpresa, que deverá servir de tema para meditação ao júri quando for escolher seus vencedores. Santitos não ganhou a simpatia do público por acaso. É um pequeno milagre de equilíbrio em condições instáveis. Veja a história: uma jovem viúva, Esperanza Diaz (Dolores Heredia) leva a filha ao hospital para operar as amídalas e, quando vai buscá-la, é avisada de que a menina morreu, por motivos desconhecidos. Talvez atacada por um vírus, que ninguém sabe qual é.
Não deixam ver o corpo. De volta à casa, tem uma visão. São Judas Tadeu a avisa de que a filha está viva e ela deve ir procurá-la. O que se tem em seguida é uma trip de Esperanza por diversas cidades mexicanas, e em seguida a Los Angeles, freqüentando os piores ambientes possíveis, pois está convencida de que a menina foi seqüestrada e levada para um bordel. Nessa viagem iniciática, a própria Esperanza se prostitui, descobre uma sexualidade que, se adivinha, nunca fora lá muito desenvolvida nela, e começa uma improvável paixão por um profissional da luta livre.
Felizmente, essa sinopse meio destrambelhada é salva pela sabedoria com que Springall mergulha no imaginário do seu povo. O binômio religião-sexualidade é explorado a fundo. O diretor sabe que trabalha numa realidade em que o senso do sagrado chega ao paroxismo barroco. Por isso, não soa estranho quando Esperanza liga, de bordéis distantes, ao seu confessor, para obter alívio e remissão de seus pecados. Nem parece inacreditável que ela se submeta a uma verdadeira consultoria de santos, apelando ora para São Judas, ora para Santo Antônio, para saber que caminho deve tomar em sua vida.
Há um lado dramático no filme; afinal se trata de uma mãe que procura por uma filha dada como morta. Mas essa dramaticidade é temperada por um senso de humor constante. Como se Springall aderisse e, ao mesmo tempo, olhasse a distância, a estética preferencial de seu país, que tende ao melodrama. Essa desconstrução, esse distanciamento crítico em relação ao barroquismo da dramaturgia mexicana, parece ser ainda uma tardia e permanente influência de Luis Buñuel, que por lá trabalhou, conformou-se ao melodrama ao mesmo tempo em que o conformava ao seu estilo próprio, e fez do México sua residência.
Morreu ali e ali deixou herdeiros, o caso mais notório sendo o de Arturo Ripstein.
Quanto a Estorvo, é, como se sabe, a versão para cinema do romance homônimo de Chico Buarque. O filme foi a Cannes e, lá, recebido com reservas.
Trata-se de um curioso paralelismo com a recepção do próprio livro. Chico é uma figura nacional, uma unanimidade, mas ninguém ficou totalmente convencido, na época, de que aquele compositor de sucesso, o rapaz de olhos claros e tímido, havia mesmo escrito um grande livro.
Hoje, com o recuo de alguns anos, já se pode dar a Chico o que pertence a ele. Para esse reconhecimento foi necessária a intervenção de críticos de alta respeitabilidade, e nada ranhetas, como Roberto Schwartz, mostrando que Estorvo, talvez mais do que qualquer outro livro contemporâneo, ousava ir à essência do que era o Brasil do fim de século.
Para Estorvo, o filme, se pede o mesmo trabalho crítico, a mesma boa vontade para acolher este que é um dos mais importantes - e interessantes - trabalhos do cinema brasileiro em sua fase de retomada.
Ruy radicaliza os procedimentos narrativos de Chico. Recria, em termos visuais, o sufoco kafkiano de um personagem que nem nome tem e é magnificamente interpretado pelo cubano Jorge Perugorría. Leonor Arocha faz a sua ex-mulher e enfrenta com desenvoltura um trabalho de desafio.
Aliás, todo o elenco, de Bianca Byington aos atores que defendem pequenos papéis, é muito homogêneo. Trilha sonora intrigante de Egberto Gismonti, e câmera e fotografia de virtuose, de Marcelo Durst. Estorvo ousa tocar, por um momento, a raiz mesma do mundo real brasileiro. Não se trata de um filme difícil - é simplesmente inquietante. E fundamental.