Demorou 17 anos para um longa gaúcho retornar à competição em Gramado, mas valeu a pena. Netto Perde sua Alma, exibido na noite de ontem, foi criado à semelhança de seu principal personagem, o general Antonio Netto.O filme de Beto Souza e Tabajara Ruas é viril, seco, autoconfiante. E se, ao contrário de Netto, não é revolucionário, ao menos luta por seus ideais, deixa a marca da convicção.
Não há a razão para se apavorar com as primeiras cenas, que mostram Netto no hospital, distraído entre lembrar seus feitos no passado e remoer ódio contra o cirurgião Fontainebleu. O ritmo é arrastado, o filme ainda não exibiu seu principal conflito – a compulsão de Netto por seus ideais, a vastidão do pampa contaminando as ambições políticas, cada vez mais largas. Com a batalha do Seival e a proclamação da República do Piratini, o filme realmente começa, e Netto assume sua devida dimensão épica.
As cenas de batalha surpreendem, especialmente porque Souza e Ruas souberam resistir à tentação de copiar modelos hollywoodianos. Uma cena chama a atenção: um corneteiro monarquista é perseguido e morto por um lanceiro, enquanto a câmera acompanha em detalhes sua agonia. O olhar incrédulo do garoto, preso nos matagais de num charco, seguido da imagem de um cavalo pelo campo de batalha, é a mais perfeita tradução de quem morre sem saber por quê.
A partir do momento em que o sargento Caldeira aparece no quarto para Netto, o sistema de flashbacks ganha ritmo e coerência, e o filme corre célere até o final, com destaque para a cena em que Netto (Werner Schünemann) confessa a sua futura mulher, Maria (a uruguaia Laura Schneider) a palavra obscena amor. As imagens agora fogem ao padrão do filme, são fechadas e de encontro a uma parede, não há horizontes, reforçando a sensação de que o amor, para Netto, representa um cerceamento.
A simplificação do texto original (o livro homônimo de Tabajara Ruas) deixa de fora alguns personagens importantes, como Osório e Garibaldi, mas é indispensável para não complicar a compreensão de uma trama que viaja por meio do tempo e das guerras.
De todo modo, o personagem de Netto se define ao menos politicamente em algumas falas, como quando o embaixador inglês pergunta se ele é monarquista ou republicano, blanco ou colorado, e ele responde "Sou general", ou quando admite que os únicos derrotados na Revolução Farroupilha foram os negros, que experimentaram o direito de ser cidadãos e acabaram voltando à condição de escravos.
Com uma ótima trilha de Celau Moreira e cuidadosa reprodução de época, Netto Perde sua Alma vence a batalha e acaba sendo exatamente o que seus diretores queriam: um bom espetáculo.