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Los Angeles na segunda-feira, Nova York na terça - não foi fácil seguir a trilha do cineasta israelense Amos Gitai nos Estados Unidos, esta semana. Mas ele finalmente foi encontrado no hotel nova-iorquino e conversou durante quase uma hora com a reportagem pelo telefone. Gitai é o diretor do belíssimo Kadosh, que no Brasil recebeu o título de Laços Sagrados. O filme foi um grande sucesso entre críticos no Festival de Cannes do ano passado - Cahiers du Cinéma considerou-o um dos grandes destaques do evento -, repetiu a performance na 23.ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e agora estréia sob o signo da polêmica. A crítica que Gitai faz aos fundamentalistas judeus mexe com os brios da comunidade. No Rio, o filme abriu num lançamento pequeno, mas virou um programa concorridíssimo desde que houve até protestos contra a exibição. Em São Paulo, antes mesmo que o filme estreasse, a redação do jornal "O Estado de S. Paulo" já havia sido invadida por e-mails e faxes em que o diretor é acusado de "profanação" e também de aviltar a traição judaica. Não era exatamente esse o objetivo de Gitai ao se lançar ao projeto, mas ele sabe que Laços Sagrados incomoda. Sabe por que isso acontece. E não se arrepende de ter colocado o dedo na ferida. Conta histórias curiosas. Um rabino escreveu-lhe uma carta detalhada, contestando o que lhe pareciam as distorções do filme. Falava de cátedra, mas, no final, surpreendentemente, dizia que, por todos aqueles motivos, não veria (jamais!) o filme de Gitai. Os ortodoxos, verdadeiros fundamentalistas do judaísmo, esses nem vão ao cinema, mas já foram contra só de saber que o cineasta ia fazer o filme. Imagem de choque Gitai, de 50 anos, fez arquitetura antes de optar pelo cinema. O pai, o tio, todos eram ligados à arquitetura. O avô integrou os quadros da Bauhaus. Não admira que Gitai, que começou como documentarista, tenha resolvido fazer, no cinema, uma trilogia no quadro das três maiores cidades israelenses. Fez Yom-Yom, literalmente "Dia-a-Dia", em Haifa; Devarim, que pode ser traduzido como "Coisas", mas também é a designação do livro bíblico do Deuteronômio em hebraico, em Tel-Aviv; e, agora, Kadosh, em Jerusalém. Em cada um desses filmes, o cenário não é acidental. Em todos eles, o método é sempre o mesmo. Arquiteto de imagens, Gitai prepara minuciosamente cada plano, desenha-os mesmo, trabalhando com storyboard. E não abre mão das cenas filmadas em um só plano, como se fossem psicodramas. O cineasta explica o caso de Kadosh. "Queria filmar em Jerusalém e procurava a melhor história para situar no quadro dessa cidade." Tinha de ser uma história em torno de religião, pois, como diz Gitai, ela está no centro de três culturas religiosas - cristinianismo, judaísmo e islamismo - que dominam mais de 2/3 da humanidade. O que essas três culturas têm em comum, segundo o diretor, é a opressão da mulher. Foi assim que a trama de Kadosh começou a tomar forma, tecida por ele e pela roteirista Eliette Abecassis. "Ela me trouxe um olhar feminino, fundamental nesse projeto; enriqueceu o filme com diálogos que eu, como homem, dificilmente conseguiria criar." Logo no começo um brilhante plano-seqüência antecipa o rigor do filme. O homem acorda, veste-se e faz as orações da manhã agradecendo a Deus por não ter nascido mulher. A estética vira ética para Gitai, o travelling (movimento de câmera) adquire um sentido moral, como reivindicavam os jovens diretores da nouvelle vague francesa, por volta de 1960. Foi um projeto difícil de montar, mais do que os dois filmes anteriores da trilogia. O roteiro foi recusado pela comissão de cinema do Estado de Israel, o que significa que "Kadosh" não teve acesso ao fundo de verbas governamentais. Foi preciso buscar os parceiros no exterior - na França, principalmente, onde Gitai já era conhecido (e apreciado) pela participação dos seus filmes no Festival de Cannes. Depois do sucesso de Kadosh na Croisette, no ano passado, ele voltou a integrar a seleção oficial de Cannes 2000 com Kippur, filme memorialista ou autobiográfico, baseado em suas experiências na guerra do Kippur, em 1973, quando forças egípcias e sírias desfecharam um ataque-surpresa a Israel no Dia do Perdão. Novamente, o roteiro foi recusado pelo governo. Novamente Cahiers colocou Gitai lá no alto, definindo Kippur como obra-prima. O filme é belíssimo, tanto ou até mais do que Kadosh. Será uma das atrações do Festival do Rio BR, em outubro, e da Mostra Internacional de São Paulo, na seqüência. Alienação Define a mise-en-scene, o ato de direção, como a arte de colocar ordem no caos. Selecionar os planos, a distância dos objetos filmados em relação à câmera, a posição dos atores, a movimentação (deles e da máquina), tudo isso o apaixona, pois ele sabe que só por meio da relação ator-cenário é possível descobrir o que um autor quer dizer sobre o homem no mundo. O assunto passa de Kadosh para Kippur, que o paulistano só vai ver no mês que vem. "Minha dificuldade naquele filme é que, em vez da ordem, eu tinha de filmar o caos da guerra." Confessa que o filme sempre esteve nas suas cogitações, mas tornou-se mais insistente nos últimos dez ou 15 anos. Teve tempo de sobra para pensar. Os problemas no set, os tanques, helicópteros e bombas, tudo isso ficou mais fácil de controlar depois que ele definiu o conceito de Kippur. "Queria que a câmera não se afastasse do rosto humano." O mundo explode, as pessoas se matam e o resultado é um dos filmes de guerra mais impressionantes dos últimos anos, talvez de todo o cinema. Mais intimista, Kadosh não é menos contundente. O drama dessas pessoas feridas pela intolerância religiosa - "A religião que vira ideologia", diz Gitai - cala fundo no espectador. Gitai não queria ficar no simples registro - na denúncia, vá lá o termo - dessa opressão. Por isso destaca a participação da roteirista, uma escritora importante em Israel. "Com Eliette desenvolvi a dupla de personagens femininas que formam um contraponto ao universo dos homens; uma cala-se e submete-se às pressões desse mundo, mas a outra reage e tenta abrir seu caminho." Sua razão o aproxima dessa personagem, mas ele não nega que seu coração inclina-se para a sofredora. Destaca o trabalho da atriz Yaël Abecassis. Diz que é uma estrela da TV israelense. "Largou tudo e ficou meses à minha disposição, por acreditar no projeto." Ele acha que cinema é isso - uma família. Técnicos e artistas, todos participando do mesmo movimento, unidos na mesma emoção para tornar viável o que nasce como sonho de um homem, o diretor, o autor. "Faço filmes para me sentir melhor, na esperança de mudar o mundo."
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