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"A Malvada" e "De Repente Num Domingo" reestréiam em SP


Jean-Luc Trintignant e Fanny
Ardant em "De Repente
Num Domingo", de Truffaut

São dois filmes em preto-e-branco, um dos anos 50 e outro dos 80. A carência de cores não chega a ser um elo a unir A Malvada, de Joseph L. Mankiewicz, e De Repente, num Domingo, de François Truffaut. O primeiro é um dos grandes clássicos da história de Hollywood, o segundo é considerado uma obra menor do seu diretor. Ambos reestréiam nos cinemas de São Paulo.

Se há um filme ao qual cabe a classificação de cult é A Malvada. A obra-prima de Mankiewicz, premiada com seis Oscars (entre eles, melhor filme, diretor, roteiro e ator coadjuvante - para George Sanders), também está de volta ao cartaz, esta semana, em Nova York, numa cópia restaurada, para comemorar a data redonda. Há exatamente 50 anos, no Roxy, um cinema então elegante, A Malvada iniciou sua gloriosa trajetória. Mankiewicz, o chamado cineasta da palavra, invade os bastidores do teatro para contar a história de uma certa Eva, que faz de tudo para ofuscar uma diva do palco.

A diva é Margo Channing, uma das mais celebradas criações de Bette Davis. Eva, a malvada, é a atriz Anne Baxter e a jovem Marilyn Monroe está presente. Mankiewicz conta sua história por meio de flash-backs, uma inspiração que veio de Orson Welles (Cidadão Kane). Mesmo que você nunca tenha visto o filme (o que pode ser raro, mas não impossível), já deve ter ouvido falar na célebre frase "Apertem os cintos que a noite vai ser turbulenta". Na verdade, a frase não é bem essa, mas foi a versão que ficou. A Malvada começa assim. No cinema de Mankiewicz, toda tragédia passa pela palavra e a própria mise-en-scene constrói-se no dinamismo dos diálogos. Raramente você vai ouvir frases tão inteligentes e sofisticadas e, quando o crítico Addison De Witt (Sanders) está em cena, tão mordazes e espirituosas.

Truffaut fez alguns dos mais belos filmes franceses do pós-guerra. Criou cenas memoráveis que um espectador carrega pela vida afora. O menino que corre em direção ao mar no desfecho de Os Incompreendidos, qualquer cena com Jeanne Moreau em Jules e Jim - Uma Mulher para Dois, por exemplo, aquela em que Catherine canta Tourbillon; qualquer cena com a sedutora Madame Tabard de Beijos Roubados; o menino-lobo que expressa sua tenebrosa solidão acuando na noite de lua cheia de O Garoto Selvagem. Truffaut foi um grande diretor.

Morreu cedo demais, com apenas 52 anos, em 1984. Se estivesse vivo, ainda não teria completado 70. Poderia estar, quem sabe, no auge. Ou então Truffaut teria sido desmontado da posição que adquiriu na história com suas obras-primas. Pois o atormentado Truffaut, o romântico que desconfiava do romantismo, era um homem perfeitamente feliz, feliz demais, ao morrer. Pode ser uma crueldade dizer isso. Grande amante, apaixonado por essa entidade meio mítica, a Mulher, encontrou a felicidade ao lado de Fanny Ardant. Ela foi benéfica para o homem, mas não para o artista. Os dois últimos filmes que Truffaut fez - com ela - não estão entre os melhores de sua carreira.

Essa é uma opinião sujeita a controvérsia quando, ou se, aplicada a A Mulher do Lado, um filme decepcionante, mas com muitos admiradores. Não há muito o que discutir a propósito de De Repente, num Domingo. É um filme de cinéfilo, em que Truffaut desfila (ou destila) as lições que absorveu do mestre Alfred Hitchcock, sem nunca atingir a dimensão angustiante que o suspense adquire nos clássicos do grande diretor. De Repente, num Domingo é o que se pode chamar de divertissement. Feito para divertir, um policial repleto de citações - feito por um diretor que foi crítico, portanto, um cinéfilo, para cinéfilos.

Não é ruim, ou melhor, talvez seja ruim, mas com certeza não é desagradável. Seu feminismo é banal e isso, que poderia ser um insulto para um artista como Truffaut, é só uma constatação. Ele queria oferecer um papel sob medida para Fanny Ardant. E criou a secretária que vive mil e uma peripécias para ajudar o patrão acusado de assassinato. Apaixonam-se, claro, pois o amor sempre foi o tema número um para o diretor. A melhor piada de De Repente, num Domingo - un clin d'oeil, um piscar de olhos em relação a Hitchcock - é que o personagem de Jean-Luc Trintignant, com sua fixação pelas loiras, demora a perceber a morena espetacular ao seu lado.

Por menos denso ou profundo que seja De Repente, num Domingo, o derradeiro policial de Truffaut não deixa de ter um aspecto testamental. Menos sobre a complexidade das relações humanas, que ele explorou tão bem em seus grandes filmes, e mais muito mais, aplicado ao próprio cinema. Truffaut fez o filme em preto-e-branco, rebelando-se contra o que chamava de "ditadura do colorido". Foi uma maneira de aproximar-se do clima do gênero que costumava ser chamado de "noir". Foi sua sétima associação com o fotógrafo Nestor Almendros, a 11.ª com o músico Georges Delerue, compositor que roça os temas melodramáticos, mas mantém-se distante deles por sua ironia.

Na imagem e até na música, Truffaut homenageia os policiais baratos dos anos 40 - e o mestre Hitchcock, claro. A ironia de certos diálogos lembra velhos êxitos da dupla Katharine Hepburn-Spencer Tracy, o inusitado figurino que a heroína usa (e as circunstâncias que a fazem usá-lo), a sordidez deliberada da cenografia, é nesses detalhes que Truffaut, o grande, aparece mesmo num filme pequeno. Realmente, não é desagradável. É possível até tirar certo prazer do ato de ver De Repente, num Verão, mas Truffaut, que sempre teve uma queda pelo thriller - expressa em Atirem no Pianista, A Noiva Estava de Preto, A Sereia do Mississippi, o próprio Uma Jovem tão Bela como Eu - desta vez não conseguiu fazer o que se poderia esperar de um artista como ele. Usa o mecanismo das convenções do gênero para divertir, mas não para revelar duas ou três coisas, que sejam, sobre a natureza humana.

De volta ao começo, talvez não seja só o preto-e-branco o elo entre A Malvada e De Repente, num Domingo. Truffaut vê o amor como oposição entre o gesto impulsivo e a palavra consciente. E a palavra remete a Mankiewicz.

De Repente, num Domingo (Vivement Dimanche). Drama. Direção de François Truffaut. Fr/83. Duração: 111 minutos. 14 anos

A Malvada (All About Eve). Drama. Direção de Joseph L. Mankiewicz. EUA/50. Duração: 138 minutos.14 anos. (Luiz Carlos Merten/ Agência Estado)

 

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