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Filme de Lúcia Murat apresenta sua visão do choque cultural



Em abril de 1997, a cineasta Lúcia Murat aterrissou em Brasília com uma mochila nas costas e uma idéia louca na cabeça: conhecer a reserva indígena da tribo kadiwéu, no Pantanal do Mato Grosso. Ela conseguiu estabelecer alguns contatos, pegou vários ônibus, prosseguiu de caminhão em estrada de terra, navegou rio abaixo e, como a brava guerreira que é, chegou enfim ao destino.

Sua tenacidade era motivada por quatro ou cinco linhas de uma história que durante 15 anos, volta e meia lhe vinha à cabeça e falava do confronto entre índios guaicurus e colonizadores no século 18. Graças a um engenhoso ardil, o embate foi selado com a vitória daqueles índios cavaleiros em 1778 no Forte Coimbra, que permanece de pé.

A insistência de encontrar os kadiwéus devia-se à idéia de realizar um documentário sobre os descendentes da tribo que subvertia os estereótipos de submissão e indolência de nossos índios. No entanto, desde o primeiro contato, a imaginação de Lúcia Murat começou a trabalhar no sentido da ficção. O resultado, Brava Gente Brasileira, abre neste sábado a categoria ficção na Première Brasil do Festival do Rio BR 2000, depois de conquistar crítica e público no Festival de Toronto.

Confronto

Pode causar estranheza que a diretora de Que Bom Te Ver Viva, contundente documentário com depoimentos de mulheres torturadas durante a ditadura, e Doces Poderes, sobre o conluio entre a mídia e a política, em Brasília, tenha recuado dois séculos para tratar do confronto entre índios e brancos. Lúcia Murat, no entanto, não detecta, na essência, nenhuma mudança temática: "Para mim, os três filmes falam da mesma coisa: da violência como parte da luta pela condição humana e da questão da sobrevivência a atos de violência."

No caso de Brava Gente Brasileira, título tirado de uma linha da letra do Hino da Independência, aos elementos de violência e sobrevivência soma-se uma nova questão: "O filme fala de dois mundos que não se tocam, a impossibilidade de se entender o outro, o diferente", enfatiza a diretora, que assina também a produção e o roteiro.

Consultas

O tratamento ficcional do fato histórico, cujo desfecho é comparado ao episódio de Cavalo de Tróia, contou com bases sólidas. Pelo lado do "branco", Lúcia consultou mais de 50 livros, todos de época, que incluem relatos de espanhóis e portugueses. Pelo outro lado, ou seja, o dos índios, utilizou basicamente a memória oral dos sobreviventes mais velhos, ao longo de dois meses e 13 horas de pesquisa gravada em high 8. Isso porque, desde o primeiro contato com os kadiwéus, Lúcia Murat achou imprescindível que eles retratassem a si mesmos na história que queria contar.

Sobreviveram pouco mais de mil, e 40 atuam no filme, incluindo uma índia de 100 anos que não fala português. Eles foram preparados depois de um mês de laboratório coordenado pelo ator Murilo Grossi. Integram o elenco o ator português Diogo Infante (já premiado em Gramado), e Luciana Rigueira (única atriz a interpretar uma índia), Floriano Peixoto, Leonardo Villar, Buza Ferraz e Sérgio Mamberti.

Vertentes

Neste terceiro longa, Lúcia Murat admite que quis juntar várias vertentes: "Não pretendia fazer um épico ou um filme histórico. No desenrolar dos muitos roteiros, fui juntando minha experiência jornalística e de documentarista, peguei um pouco do neo-realismo no trabalho com os índios. Embora fundamentado em pesquisa, o filme é inteiramente ficcional - nenhum dos personagens existiu. A maior dificuldade foi juntar tudo isso e a visão de dois mundos opostos em um filme só." Assim criou o português Diogo, "que representava o melhor do mundo branco da época, influenciado por Rousseau, bem-intencionado e assombrado pelo fantasma do bom selvagem". Como contrapontos brancos, criou soldados ferozes e mercenários, e suas diferentes reações aos índios, principalmente às mulheres da tribo. Estupros, obsessão por mina de prata, selvageria colonizadora e a bela página de resistência dos índios compõem a trama.

Bonito

As filmagens foram realizadas no Forte Coimbra (a sete horas de balsa da cidade mais próxima, Corumbá) e uma cidade cenográfica foi construída em Bonito, uma das regiões mais esplendorosas do País. Com orçamento de R$ 800 mil, Lúcia optou por filmar em super-16, com direção de fotografia a cargo de Antônio Luís Mendes: "Esta decisão não foi apenas uma questão de economia. Eu queria um filme mais ágil, com muita câmera na mão e próximo do documentário na abordagem dos índios." Optou também por não legendar suas falas: "Achei que seria banalizar, reduzir o valor de sua cultura. Além disso, os índios têm uma expressão tão forte, e um gestual tão particular, que prescindem de legendas."

Na busca da autenticidade e respeito com os personagens vitoriosos no confronto, mas perdedores ao longo da história, Lúcia Murat e equipe sentiram na pele as dificuldades de "contato com o outro mundo" que queriam retratar: "Brava Gente narra a história de um não-diálogo e, de certa forma, as filmagens reproduziam as dificuldades de se entender uma outra cultura.

Tivemos aliados maravilhosos dentro da tribo, mas muitas vezes quisemos arrancar os cabelos. Problemas de produção de um filme simplesmente não fazem sentido para eles."

Mesmo assim, é com brilho nos olhos que relembra episódios, como a descoberta de Adeilson Silva, de 11 anos, filho de índia e branco, que "surgiu como uma aparição, no meio da noite", quando se hospedava na casa da mãe do menino: "Quando o vi, pensei que se eu precisasse de um ator como ele não encontraria. Mudei o roteiro para criar um papel para ele, a quem chamei o tempo todo de Dilsinho. Só no final do filme, descobri o seu verdadeiro nome. Descobri que para os kadiwéus, a mudança de nome era um fato comum."

Como saldo final, ficou a constatação das dificuldades que os índios enfrentam na sobrevivência, o deslumbramento com a descoberta "do outro, do diferente" em um poderoso embate corpo-a-corpo, e a incorporação da frase de Levy Strauss, autor de uma pesquisa com os kadiwéus nos anos 30: "Ele falou do privilégio de observar outra cultura. E foi isso que sentimos." Brava Gente Brasileira também será exibido este mês na Mostra Internacional de São Paulo e tem lançamento comercial previsto para 2 de novembro, pela RioFilme. (O Estado de S. Paulo)

 

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