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Durante muito tempo, o homem do campo no Brasil foi representado pelo Jeca Tatu de Monteiro Lobato: um peão isolado do mundo, de pés grandes e sujos, linguajar estropiado e distante de qualquer idéia de cidadania. O documentário O Sonho de Rose, uma das atrações da próxima Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, reverte essa imagem mostrando agricultores organizados, conscientes de sua importância na cadeia de subsistência do País e orgulhosos de suas conquistas na luta pela terra. Boa parte dessa mudança se concretizou nos últimos 15 anos, período coberto pelo filme de Tetê Moraes. Desde Cabra Marcado para Morrer, não se via um documentário que sintetizasse tão bem uma macroquestão brasileira e sua dinâmica num certo lapso de tempo. Mas se o filme de Eduardo Coutinho partia do sonho da reforma agrária para mostrar o seu desmonte durante a ditadura militar, o de Tetê Moraes conta uma história vitoriosa, que comprova a viabilidade de uma profunda renovação das estruturas agrárias do País. Tudo começou em 1985, quando 1.500 famílias camponesas ocuparam um latifúndio improdutivo no município de Sarandi (RS), a 500 km de Porto Alegre. A fazenda Annoni encontrava-se há 14 anos num moroso processo de desapropriação. Meses depois, enquanto as quase 8 mil pessoas viviam sob barracas de lona à espera do assentamento, Tetê Moraes chegou com sua equipe para registrar um momento que ela considerava épico. Conversou com muita gente, filmou uma caminhada de 300 ocupantes até Porto Alegre, acompanhou a fermentação do movimento. Ao editar o filme, preferiu dar ênfase à participação das mulheres, uma delas em especial. Roseli Seleste Nunes da Silva era uma camponesa tão simples quanto determinada, que comparecia às manifestações com o filho mais novo nos braços, o primeiro a nascer no acampamento e que receberia o nome de Marcos justamente por ser um marco da esperança de todos. Assim nasceu Terra para Rose, cujas últimas cenas transmitiam um misto de emoção e revolta. Rose morreu esmagada por um caminhão de empresa agrária que se lançou contra um grupo de manifestantes à beira de uma estrada. A pergunta não calou até hoje: Rose e mais dois camponeses foram vítimas de um acidente ou de um atentado? Desde então, a ocupação da Annoni gerou o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, elemento importante do jogo de forças na sociedade brasileira atual. Terra para Rose ganhou prêmios na Jornada da Bahia e nos festivais de Brasília e Havana, além de ser exibido em seis certames internacionais. Tetê Moraes continuou a fazer documentários e trabalhou na busca de parcerias entre o cinema brasileiro e as televisões nacionais e estrangeiras. Mas em 1996, dez anos depois da primeira visita, ela sentiu a necessidade de rever aquelas pessoas e o que foi feito dos seus sonhos. O projeto de um novo documentário foi patrocinado pelo Incra. Seria um vídeo de 45 minutos, rápido e barato. Com a co-roteirista Tetê Vasconcelos, ela fez uma primeira viagem de reconhecimento do terreno, paralelamente a uma vasta pesquisa sobre a evolução da questão da terra e da reforma agrária no País. Descobriu de pronto que o cenário tinha mudado profundamente. Os antigos ocupantes da Annoni haviam se dispersado em diversos assentamentos e agrovilas do Estado, onde prosperaram criando cooperativas, abrindo frigoríficos, estabelecendo acordos de cooperação entre si e com organizações não-governamentais, e até associando-se a distribuidores multinacionais. “Parecem camponeses do norte da Itália”, compararia o deputado Márcio Moreira Alves, ao ver o filme pronto. Nada ocorreu por milagre, a começar pelo próprio projeto de Tetê. Disposta a transformar o vídeo num filme de cinema, ela teve de vencer a oposição do próprio Incra. De um funcionário ouviu que o órgão não pretendia “botar azeitona na empada do MST”. Mas Tetê Moraes é osso duro de roer. Foi à luta, levou o caso à imprensa, resistiu às tentativas de interferência do Incra na edição final. A Margarida de Prata que a CNBB conferiu ao vídeo redobrou suas energias. Levou quatro anos entre as novas filmagens e a chegada de O Sonho de Rose finalmente às telas, com patrocínio da BR Distribuidora. O filme tem colaboração de Paulo Halm num roteiro de edição primoroso, som impecável e excelente transferência para película segundo um novo processo disponível em Nova York. A diretora tampouco abdicou de sua independência perante o MST. “Cansei de repetir que o filme não era um institucional do movimento”, relembra. De fato, apesar de sua calorosa simpatia pelos ex-sem-terra, não há azeitonas em O Sonho de Rose. Se bandeiras do MST aparecem aqui e ali, é porque fazem parte do dia-a-dia dos assentados e dos candidatos à terra prometida. O filme limita-se a mostrar como é possível escapar da sina de Jeca Tatu pela força da organização, do trabalho coletivo e da preservação da individualidade. Coincidência ou não, Tetê Moraes tem-se mostrado uma exímia contadora de histórias brasileiras bem-sucedidas. Em 1980, no curta Quando a Rua Vira Casa, documentou a organização popular do bairro carioca do Catumbi e sua resistência contra a descaracterização. O êxito das experiências de administração comunitária de um municipício catarinense renderam o longa Lajes, a Força do Povo, de 1983. Em O Sonho de Rose, quando começa a se instalar um certo elogio do paraíso agrário, o roteiro habilmente começa a mostrar que nem tudo é tão simples assim. À medida que reencontra diversos personagens de Terra para Rose, Tetê vai desdobrando a dinâmica das comunidades, o processo espontâneo de depuração e a solução encontrada para as tensões inevitáveis num projeto que mexeu com os paradigmas da vida camponesa. “Os grupos que dão certo são os menores, que têm um denominador comum cultural e valorizam a solidariedade e a disciplina típicas de um movimento social, mas que também deixam espaço para o individual”, aprendeu a documentarista. Dívida simbólica – Nada mais distante de um filme-tese que O Sonho de Rose. A trilha sonora, composta de variações da canção Assentamento, de Chico Buarque, contribui decisivamente para o envolvimento emocional da platéia. Trata-se de um filme sobre pessoas mais que sobre um movimento. A atenção para a opinião individual, em lugar de palavras de ordem, afasta-o de qualquer proselitismo político. O interesse humano marca o admirável desfecho do filme, quando Tetê, enfim, encontra os familiares de Rose, à época vivendo de biscates na periferia de Porto Alegre. Instala-se, então, dentro do documentário, uma discussão sobre as dívidas simbólicas do MST para com Rose, erigida em mártir da luta pela terra. O próprio filme deflagrou o processo de assentamento da família. Não se vê na tela, mas Tetê negociou pessoalmente com o Incra de Porto Alegre e o MST para que eles viessem a receber, há apenas dois meses, seus 18 hectares em Viamão (RS), onde já cultivam milho, feijão e mandioca. Há duas semanas, o viúvo José e os filhos Marcos e Paulo botaram roupa de missa para vir ao Festival do Rio, onde o filme foi exibido na Première Brasil. Acompanhavam com um misto de humildade e orgulho a reação emocionada do público. Talvez não vejam acontecer a mesma coisa em São Paulo, Brasília e Havana, próximas paradas de O Sonho de Rose. Mas voltaram para casa certos de que eram personagens de um filme bem grande chamado Brasil. O Sonho de Rose. De Tetê Moraes. Dia 21, às 15h50, na Sala UOL. Dia 22, às 19h30, na Sala Cinemateca. Dia 23, às 20h, na Sala UOL.
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