Depois de passar pelo Rio, o artista plástico americano Julian Schnabel chegou ontem a São Paulo para promover seu segundo trabalho como cineasta, o longa Antes do Anoitecer (Before Night Falls), uma das atrações da 24ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo, que começou ontem para convidados e prossegue até o dia 2 em dez salas de exibição. Seu filme será exibido amanhã, às 20h20, no Cinesesc; no sábado, às 18h10, no Espaço Unibanco 1 e na segunda, às 23h30, no Cinearte 1. Assim como Basquiat, seu primeiro filme, rodado em 1996 e que contava a história do pintor haitiano Jean-Michel Basquiat, Schnabel fez outra cinebiografia em Antes do Anoitecer: a do autor cubano Reinaldo Arenas, encarcerado dois anos pelo regime de Fidel Castro por ter escrito uma obra surrealista (o livro El Mundo Delirante) tida como contra-revolucionária e pelo fato de o novelista ser homossexual.
O ator espanhol Javier Bardem faz um vigoroso portrait de Arenas, criando uma performance que pode lhe render uma indicação para o Oscar (o filme estréia em dezembro nos EUA). "Foi um trabalho estressante, principalmente pelo fato de criar o sotaque cubano e rodar cenas tão dramáticas num curto espaço de tempo", disse ao Estado o ator de Carne Trêmula e Jamón, Jamón.
Presente este ano no Festival de Veneza, Schnabel acabou conquistando o prêmio de melhor diretor. No elenco do filme também está o ator francês Olivier Martinez, no papel de Lázaro Gomez Carriles, amante de Arenas e com quem o escritor passou os últimos anos de sua vida. Há pontas de Johnny Depp, como o travesti Bon Bon; Sean Penn e até Hector Babenco. "Babenco é um grande amigo", declarou Schnabel.
Antes do Anoitecer é, em parte, baseado na autobiografia homônima de Arenas, lançada três anos após sua morte. O filme acompanha a infância paupérrima do escritor no vilarejo cubano de Oriente, na década de 40 (o garoto Arenas e sua mãe são respectivamente interpretados pelo filho e esposa de Schnabel) até sua mudança para Havana, onde se torna um escritor. El Mundo Delirante, a obra que levou Fidel Castro a classificar Arenas como gusano (ou verme), foi escrita quando o novelista tinha 20 anos. Enviado para Paris, o manuscrito foi publicado e recebeu o prêmio de melhor obra estrangeira de 1969. Apesar da honraria, Arenas não conseguiu escapar de cumprir pena no presídio de El Murro, onde todos os intelectuais gays viviam numa espécie de regime de campo de concentração.
Arenas conseguiu imigrar para os EUA em 1980, depois de o governo de Fidel ter permitido uma anistia aos homossexuais, deficientes mentais e criminosos. O escritor chegou a Miami a bordo do barco Muriel. Após se estabelecer em Nova York com Carriles, Arenas chegou a escrever alguns livros, mas logo contrairia o vírus da aids. Em 1990, aos 47 anos, ele se suicidaria em seu pequeno apartamento em Manhattan. "Eu queria transformar esse sofrimento em beleza", disse o cineasta em entrevista na semana passada.
Por que decidiu filmar a vida do escritor Reinaldo Arenas?
O meu interesse principal foi fazer um filme sobre a beleza, apesar da trajetória de Reinado ter sido árdua. Outra coisa foi mostrar as contradições do coração e a doença, momentos pelos quais todos nós vamos passar mais cedo ou mais tarde. Depois que terminei de rodar Basquiat, muita gente vinha me perguntar qual seria meu próximo projeto. Não vejo as coisas sob esse prisma. Eu não tenho um projeto. Não preciso de um projeto. Sou um pintor já estabelecido e que não precisa de um trabalho extra para sustentar meus cinco filhos. Meu objetivo é fazer com que o maior número de pessoas escutem a voz de Reinaldo. Em vez de assistir a outro clone de Quentin Tarantino, com pessoas atirando nas outras o tempo todo, o cinema americano pode muito bem buscar inspiração em outras fontes. Reinaldo escreveu 20 livros e, muitos de seus contos, poderiam resultar em filmes interessantes. Isso sem falar em tantos outros obscuros autores latinos. Em meu filme, eu vagamente jogo um pouco de luz no escritor José Lezama Lima, que foi mestre do barroco em Cuba e perseguido também pelo regime.
Infelizmente, tive de cortar uma passagem maior do personagem.
Antes Que Anochezca é uma autobiografia de Reinaldo Arenas lançada postumamente. Parece que o sr. evitou usá-la unicamente para criar o roteiro de Antes do Anoitecer.
Exato. Meu filme é também uma ilustração pré-Antes Que Anochezca.
Basicamente, meu roteiro é um acúmulo de obras de Reinaldo como El Color del Verano, El Palácio de las Blanquíssimas Mofetas, El Mundo Alucinante, Graveyard of Angels, mais a história de Lázaro Gómez Carriles. Reinaldo escreveu versões diferentes de Antes Que Anochezca. Esse livro foi perdido e depois destruído. No leito de morte, em Nova York, ele ditou o livro todinho para Lázaro, que gravou em fitas e depois transferiu para o papel. Lázaro foi de uma ajuda valiosíssima e hoje ele trabalha comigo, como assistente em meu ateliê de pintura.
Por que o sr. filmou no México? Havia algum temor de sofrer pressão em Cuba?
A única pressão veio de mim mesmo. Conheço muita gente em Cuba e qualquer pessoa que me ajudasse nesse filme poderia ter problemas, uma vez que Antes do Anoitecer não combina muito com a ideologia do regime.
Afortunadamente, pude recriar um pouco de Cuba nas cidades mexicanas de Vera Cruz, Mérida e Progresso. Não acho que meu filme será exibido muito cedo em Havana, mas seria uma grande aula, pois muitos cubanos não sabem que existiram prisões para homossexuais durante a década de 60. Reinaldo foi um escritor que ganhou um Prêmio Nacional de Literatura em 1969, quando tinha 20 anos. Na França, ele foi premiado como o melhor novelista estrangeiro do ano. E tudo o que ele ganhou foi uma passagem sem retorno para a prisão de El Murro, onde virou uma espécie de fantasma, com seu sonho interrompido.
O sr. fez a opção de rodar Antes do Anoitecer em inglês, com poucas passagens em espanhol. Por quê?
O fato de Reinaldo Arenas estar narrando o filme já na condição de morto, fez com que eu optasse pelo inglês, uma vez que, naquela época, ele já tinha aprendido o idioma. Mas mantive a leitura de todos os poemas em espanhol. Se o filme for legendado em japonês, o público ainda vai ouvir os poemas dele em espanhol. O que é interessante sobre Cuba é que eles falam diferentes dialetos e idiomas numa país tão pequeno. Como diz o poema de Nicolás Guillén, Cuba é todo mesclado. Acredito que foi um superdesafio para um ator da Espanha como Javier Bardem vir para os EUA fazer um filme americano, em que ele tem de falar espanhol com sotaque cubano, além do inglês e até o francês com entonação cubana. Não aceito críticas de que usei o inglês como idioma principal. Deveria ser Gladiador, de Ridley Scott, falado todo em latim?
Javier Bardem é uma das grandes surpresas do filme. Fala-se até numa indicação para o Oscar. Como o sr. chegou até ele?
Em primeiro lugar, gostaria de falar que Havana é uma cidade bastante internacionalizada. São três cidades que têm essa atmosfera internacional e ao mesmo tempo são províncias: Havana, Veneza e Nova York.
Foi por isso que Reinaldo se encontrou em Nova York. Ele não encontrou um terço dessa diversificação em Miami, cidade que o deprimiu. Bem, eu queria que meu filme tivesse um sabor diversificado. Os atores principais tinham de ser confidentes, equipados e talentosos. Eu quero que o público americano veja Javier e imediatamente pense que seja Reinaldo Arenas.
E a escolha de Johnny Depp e Sean Penn, que surgem em pequenas pontas?
Quando você lida com os escritos de Reinaldo, existe uma qualidade sobrenatural. Alguns de seus personagens tem características novelísticas muito fortes. Eles são muito fantasiosos. Sean faz uma grande personificação de um compañero. Já Johnny é esse espetacular travesti. Vamos ser honestos: Johnny fica a cara de Monica Vitti quando está de peruca ruiva e a de Sophia Loren quando está loira (risos). Eu também gosto da idéia de usar o mesmo ator para fazer vários personagens como acontece nos livros de Reinaldo. Se você for muito analítico, como explicar o fato de que um travesti consegue uma boa peruca loira na prisão de El Murro?
Outra escolha surpreendente em seu filme é o cineasta Hector Babenco. Como surgiu a idéia dessa ponta dele?
Eu ainda uso outro cineasta numa ponta em meu filme. Trata-se do polonês Jerzy Skolimowski. Eu adoro o filme Pixote e também o Babenco. Ele é um grande amigo e queria muito que ele estivesse ao meu redor durante as filmagens. Também foi interessante para Babenco interpretar Virgilio Piñera, um cara tão importante na vida de Reinaldo.
Antes do Anoitecer tem um visual bastante curioso: uma fotografia meio sépia alternada com grandes cenas sem filtro. Como pintor, o sr. deve ter desenhado o filme todo em sua cabeça, não? Comente esse processo.
Rodei grande parte do filme com um filtro meio achocolatado, pois a plantação de cana- de-açúcar adquiria um verde psicodélico. Sempre gostei muito da cor do filme Pandora (Pandora and the Flying Dutchman), em que o diretor Albert Lewin usa o velho technicolor. Você está certo, vejo meus filmes como uma extensão de minha pintura, e para mim não é apenas contar uma história e sim retratar um grande tango vermelho. Há de se ter uma superfície e de se obter uma textura. Mas também não sabia explicar muito ao meu fotográfo aonde queria chegar. Tinham cenas em que queria que o céu ficasse como no Ceilão. E, na cena em que Reinaldo lê sentado num rochedo à beira-mar, eu acho que estava pensando em A Aventura (de Antonioni), muito embora aquele filme tenha sido rodado em preto-e-branco. Minha preocupação maior mesmo era que o filme tivesse um corpo físico, que sua textura fosse noticiada. Reinaldo sempre estava divagando - bem ao estilo narrativo de Cabrera Infante - sobre sua pansexualidade, que ele teria tido sexo com a chuva, as árvores, o mar, animais e seres humanos.
Do ponto de vista artístico, como compara as filmagens de Basquiat, seu primeiro filme, com Antes do Anoitecer?
Quando você faz seu primeiro filme, todo mundo tenta ajudar e esse é o grande problema. Toda essa ajuda nos limita de alguma maneira, uma vez que você não tem ainda a familiaridade com a linguagem cinematográfica.
Em Antes do Anoitecer, minha equipe estava disposta a marchar para o inferno se assim eu quisesse. A ajuda deles foi fantástica. Rodamos durante 60 dias no México, em plena temporada de estiagem. Não teve nem um dia em que foi necessário cancelar as filmagens por causa de mau tempo. Minha equipe fazia de tudo e criou truques técnicos nunca antes tentados (risos). Posso também dizer que tive mais liberdade em meu segundo filme. Mas Reinaldo também me ofereceu um vasta palheta para eu extrapolar minhas idéias. De uma maneira, foi Reinaldo quem montou esse meu trabalho. Eu apenas mediei a existência do filme.
Em 1984, o fotógrafo Nestor Almendros rodou um documentário em que acompanhava essa perseguição a intelectuais gays desde os primórdios da Revolução Cubana. O que acha do filme e o quanto ele foi útil para o sr.?
O documentário se chama Conduta Imprópria e Nestor rodou em parceria com Orlando Jiménez Leal. Por coincidência, encerro Antes do Anoitecer com imagens de um filme que Orlando fez com o irmão de Cabrera Infante sobre músicos cubanos e que foi censurado em Cuba em 1961. Bem, Conduta Imprópria é uma grande filme, que toca em temas profundos, especialmente na parte do depoimento de (o escritor) Armando Valladares.
Reinaldo faz uma participação no filme também. Acho essa história toda de perseguição a homossexuais um coisa nonsense. Os intelectuais gays de Cuba deram luz a todo um panorama de idéias e sensibilidade, que ajudou a criar o senso de humor cubano, marca registrada do país. Homossexualidade é como grama ou como a arte. Você não pode conter. Isso vai crescer, mesmo que você ponha cimento em cima. O cimento vai rachar e a grama vai nascer dessas rachaduras. É ridiculo erradicar algo que vem da natureza humana. Todo mundo tem o direito de fazer sexo com quem quiser, desde que ambas as partes estejam gostando.
Carter Burwell, que trabalhou com os irmãos Coen em Fargo, assina a trilha sonora de Antes do Anoitecer, que também tem a participação do casal Lou Reed e Laurie Anderson. Como o sr. explica essa diversidade musical?
Adoro a trilha de A Batalha de Argel, de Ennio Morricone, e também a de Aguirre, a Cólera dos Deuses, de Popol Vuh. Queria algo com o mesmo poder e também coisas como a música de Mahler em Morte em Veneza.
Também queria música cubana, mas não para turista. E Carter trabalhou isso bem de perto, criando uma música que captura uma qualidade não-verbal e física. Laurie Anderson toca viola na cena do cabaré. A canção é Rouge, que faz parte do último CD de Lou Reed.
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