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Ele era 'manic da' - Malti Sahai, curadora da retrospectiva Satyajit Ray da 24ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo, define o maior cineasta da Índia. E ela explica o que isso quer dizer. "Manic é jóia e da um signo de respeito." Quer dizer que Ray, grande artista, era uma jóia de pessoa e artista merecedor de reverência. Malti não tem dúvida alguma. Considera a obra de Ray a máxima realização artística de toda a história do cinema indiano. Não representa pouca coisa. A Índia é o único país que produz mais filmes do que Hollywood e o único em que a cinematografia nacional ocupa a fatia dominante do mercado, reservando 10% para o produto americano - o inverso do que ocorre em todo o mundo. São 30 mil salas de cinema, o que parece uma fábula, mas Malti lembra que a Índia é um dos países mais populosos do mundo. Lá se falam 21 línguas, sendo que só a hindi é falada em todo o país. Por isso mesmo, só em hindi foram produzidos 137 filmes no peíodo de 1º de janeiro a 31 de outubro do ano passado. No mesmo período, a produção indiana chegou a estratosféricos 601 filmes. Para este ano, o número é ainda maior - cerca de 700. Esses filmes fazem tanto sucesso de público que, apesar do elevado número de salas, há sempre um número muito grande filmes indianos à espera de vagas nos cinemas. Os filmes não ficam apenas uma ou duas semanas em cartaz. Centenas permanecem meses em exibição, dificultando o acesso de outros títulos ao mercado. Malti sabe sobre o que está falando. Diretora de seleção de filmes para festivais, um cargo do Ministério da Informação e da Cultura da Índia, ela escolhe filmes que representam o país em mais de 50 mostras, todos os anos. Mas ela não vai a todas e está muito contente de ter vindo a São Paulo. No sábado à tarde, vestindo o tradicional sari, foi à feira da Praça Benedito Calixto. Quer ver muitos filmes brasileiros. No ano que vem, espera fazer uma mostra de filmes nacionais no Festival de Bombaim. Pede informações sobre os rumos da produção brasileira, admira-se de que o mercado nacional seja tão formatado para o produto estrangeiro, leia-se Hollywood. "Como vocês permitem?", pergunta, com sincera indignação. Entre os filmes brasileiros que já teve oportunidade de ver na Mostra, gostou de Brava Gente Brasileira, de Lúcia Murat. Por mais que se coloque o foco no cinema brasileiro ou no indiano, a conversa é mesmo sobre Satyajit Ray. É a segunda vez que a Mostra Internacional São Paulo abre espaço para o manic das telas indiano. Em 1985, ele foi homenageado com uma seleção de seus filmes. Ainda estava vivo. Malti explica porque só seis filmes estão sendo exibidos na cidade e porque a célebre trilogia formada por Pather Panchali, Aparajito e Apu Sansar não veio na íntegra (falta o segundo). "Está ocorrendo agora, ao mesmo tempo, outra retrospectiva Ray na Alemanha; tivemos de dividir os filmes; Aparajito está sendo exibido lá." Ela conheceu Ray pessoalmente. Teve o privilégio de conviver com ele. "Era alto, elegante, tinha o porte de um grão-senhor, falava inglês com sotaque britânico", define-o. Fala sobre o seu método. "Satyajit foi desenhista antes de virar cineasta; tinha o hábito de desenhar seus filmes e só depois rodar." O estúdio de Ray foi tombado pelo governo da Índia. Podem-se ver coleções de seus desenhos, muitos deles (a maioria) storyboards de seus clássicos. Ela conta que Ray era obcecado por detalhes de época. "Colecionava objetos, vivia comprando antigüidades." A cultura indiana não é realista e, por isso, os filmes que ela define como pertencentes à tendência `Song and dance' dominam, massivamente, a produção. São melodramas cantados e dançados. "Faz parte da nossa cultura; estamos conversando, mas se de repente eu começasse a cantar e até a dançar poderia surpreendê-lo, mas seria perfeitamente normal para um indiano." No começo dos anos 50, Ray teve a revelação. Viu Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica, um marco do neo-realismo, e O Rio Sagrado, de Jean Renoir. Dois filmes de tradição realista que tiveram profunda influência sobre ele. Pather Panchali (Canção da Estrada) é neo-realista, embora a personagem da tia que conta histórias coloque o filme numa perspectiva mais fantasiosa, quase fantástica. Apu Sansar (O Mundo de Apu) também é neo-realista, mesmo com seu viés para a contemplação, uma das bases filosóficas da cultura indiana. Devi (A Deusa) fala sobre a superstição, Charulata (A Esposa Solitária) discute a condição da mulher na sociedade indiana e Shatrane Ke Khilari (Os Jogadores do Fracaso) analisa as relações entre colonizados e colonizadores. Ray era um humanista. Há críticos que acham que, na tentativa de humanizar todos os seus personagens, os bons e os maus, ele matizava demais e enfraquecia a dimensão política do seu cinema. Malti não concorda. E diz que Charulata, por seu enfoque da mulher, é o filme que prefere em toda a obra do diretor.
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