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"Princesa" revela boa direção brasileira
O diretor paulistano Henrique Goldman apresenta seu segundo longa-metragem

Cena do filme Princesa,
de Henrique Goldman
(Reprodução/AE)

O diretor paulistano Henrique Goldman chegou a entrevistar quase 2 mil travestis brasileiros na Itália como fonte de pesquisa para seu último filme, Princesa, que está na competição da 24ª Mostra. Mais do que isso, chegou a morar com algumas delas durante quatro meses, e até acompanhou-as durante o trabalho ao fazerem ponto pela Via Pirelli. Como conseqüência desse empenho, o longa de 95 minutos sobre um travesti brasileiro que vai ganhar dinheiro na prostituição italiana para um dia realizar seus sonhos de se tornar mulher de verdade ganhou uma sinceridade crua, cativante e perturbadora ao mesmo tempo. Este é o grande mérito do paulistano estreante no Brasil, realizador de um longa (Ixcán, 1998) que circulou pelo México e Guatemala, além de alguns documentários na Inglaterra e na Itália.

Princesa é "levemente inspirado" - como esclarece o diretor - no livro homônimo da travesti brasileira Fernanda Farias de Albuquerque e de seu marido italiano Murizio Jannelli. Por isso a protagonista do longa leva o nome da sua inspiradora, e tem uma história um tanto parecida: Fernanda vai à Itália se prostituir, tendo em vista somente juntar dinheiro para fazer uma operação de conversão de sexo, e depois casar com o homem que ama e ser uma feliz dona de casa. Sobre esse drama, comum a nós somente na tragicidade das reportagens policiais, o diretor fala exclusivamente para a reportagem.

Como foi o processo de pesquisa para realizar Princesa?
Foram mais de 2 mil travestis brasileiros cadastrados, não só para entrevistas, mas para o processo de pesquisa do filme e também de formação de elenco, em que viajei entre Roma e Milão inteira. Fiquei morando durante quatro meses numa pensão só para travestis, em Milão, onde na época moravam só travestis brasileiros. Eu ia para a rua com os travestis, e via eles falarem com os clientes.

Antes dessas experiências, qual noção você tinha sobre o mundo de prostituição dos transexuais brasileiros na Itália?
Eu sempre vi e achava interessante. Vivo há 20 anos na Europa, e se sou um brasileiro lá, penso assim: vem Ronaldinho pra cá, vem Aldair pra cá, mas vem também os nossos travestis. E o meu orgulho - tanto do futebol quanto dos travestis - é o mesmo.

E por que você decidiu filmar sobre eles?
São várias as coisas na minha biografia que conectam com as histórias deles - embora nenhuma seja ligada ao aspecto sexual. Não sou gay e sexualmente não me identifico muito. Não que eu tenha preconceitos, mas eu não consigo entender porque um homem que tem peitos de silicone atrai outro homem. Mas acho que há o lado de ser imigrante, com o qual me identifico, e o lado da busca de uma identidade pessoal. Me identifico com a Fernanda porque ela busca isso e acho que é algo universal: você ser jovem e buscar o que quer ser. E o meu sonho de ser cineasta, que ainda continuo lutando, é equivalente ao sonho dela ser uma dona de casa.

Essa busca é um dos cataclismas pessoais da personagem principal do seu filme, e essa amargura é muito bem traduzida na tela. Como foi trabalhar essas construções e a transposição no roteiro e nas imagens daquilo que se passa na cabeça de um homem que deseja ser mulher?
Acho que é uma questão de entrosar o trabalho de escrever e o trabalho de entrar dentro da pele do personagem. Deixar muitas vezes o personagem dizer para você o que é. É uma coisa que praticamente não existe dentro da minha cabeça, mas na cabeça dela, da personagem, ela é rica. Quem escreve tem que absorver isso no estômago, muito mais do que na cabeça. Acho que meus trabalhos não são feitos na cabeça, de modo inteligente, mas sim de modo intuitivo, mais o fato de você se colocar à disposição do personagem, e isso não é feito através do racional. Pode ser até conduzido pelo lado racional, mas não tem nada a ver com a inspiração. Não é inspiração, é transpiração, é suor, de se entregar para o personagem, e ficar batendo a cabeça na parede e descobrir o que ele quer.

Como você chegou aos travestis que atuam no filme?
Fui pedir para a Fernanda, a autora do livro, me ajudar nesse processo. Primeiro cheguei à Fernanda original quando tomei conhecimento do lançamento desse livro, na Itália. Comprei o livro, que contava a história de um travesti brasileiro que se apaixonava e se casava na Itália com um militar brigadista vermelho, e nem precisei terminar de ler para ver que ali havia um material fantástico. Liguei e encontrei a Fernanda no escritório do editor do livro. E nos adoramos à primeira vista e começamos a conversar bastante e conversar sobre roteiro e até sobre como poderíamos escalar a travesti que faria a vida dela na tela. Isso foi por volta de 95, e juntei um dinheiro pessoal para iniciar a pesquisa. Enquanto isso a Fernanda foi me ajudando nessa escalação. Assim foram passando os anos e o roteiro foi evoluindo. Mas nesse processo, a história do filme foi influenciada muito mais pela personalidade da Fernanda, do que pela história dela mesmo.

Conheci a Ingrid de Souza, que interpreta Fernanda, de uma maneira que me emociona muito até hoje. Um dia estava no Duomo - a Catedral de Milão - e vejo uma mulatinha, não sabia ainda se era mulher ou não, com um véu na cabeça, rezando muito e chorando. Resolvi esperá-la do lado de fora para falar com ela, quando saiu percebi que era travesti e fui tentar dialogar mas ela não quis falar comigo. Coincidentemente fui numa boate nessa mesma noite e a encontrei lá de novo, mas em vez de falar com ela chamei a Fernanda. As duas se conheceram e também se adoraram, e assim que a chamei para o elenco.

Depois disso aconteceu uma coisa muito triste, pois a Fernanda se suicidou. Foi meio que um escape para uma situação dela, para a qual ela não via a saída, o que me forçou ainda mais a levar o filme em diante. Terminei o filme e ele é também uma forma de dizer para a Fernanda que havia saída sim, que ela podia ter tentado seguir a vida, que vale a pena, e ter um amor à vida. Só não vou falar qual é a saída para não estragar o final do filme.

Desde a 22ª Mostra, e principalmente nessa edição, tem aumentado muito o nível dos filmes de temática GLS. O que parece é que esse assunto, que permaneceu imaculado no cinema anos a fio por diversos preconceitos, hoje é fácil de ser manipulado dentro das histórias mais simples, até com certos clichês, porque ainda inspira novidades e situações diferentes daquelas que têm aparecido normalmente no cinema convencional. Você acha que seu filme explora um pouco essa facilidade?
Também concordo com o que disse quanto a qualidade desses filmes. E é curioso você dizer isso, pois quando estava tentando convencer os possíveis compradores a apostarem na fita, eu dizia que Princesa era Pretty Woman (Uma Linda Mulher), só que aqui a Julia Roberts tem um pênis. Lógico, esse exemplo é simples demais, pois o fato de ela ser na verdade um homem desencadeia uma série de questões psicológicas e filosóficas que são mostradas no filme e o tornam mais complexo.

E qual seu próximo projeto em cinema?
Tenho muitos argumentos e alguns roteiros em constante desenvolvimento, não sei muito bem. Sei que assim que a poeira abaixar, depois de promover Princesa, quero aproveitar para fazer um filme em Londres, onde quero usar um pouco das minhas experiências de vida lá e depois quero filmar no Brasil. Algo que já estou pensando bastante, baseado em Tolstói, onde pretendo mostrar bem o balanço entre o bem e o mal que tanto se espalha pelo País.
(Agência Estado)

 

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