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Filme de Woody Allen homenageia o instrumentista francês Django Reinhardt



O maior triunfo do próximo filme de Woody Allen a ser lançado no Brasil, Poucas e Boas (Sweet and Lowdown), é nos dar a impressão de que o guitarrista Emmet Ray, encarnado por Sean Penn, de fato existiu. Essa era a maior ambição do cineasta, e seu tour de force, ou melhor, de farce, foi recompensado. Mesmo sabendo ser Emmet Ray uma figura de ficção, durante todo o filme me senti como se estivesse assistindo às poucas e boas de um personagem real, de um prodígio da guitarra esquecido pelos historiadores do jazz. Se Clint Eastwood e Bertrand Tavernier não tivessem feito, respectivamente, Bird e Por Volta de Meia-Noite, Allen poderia orgulhar-se de ser o autor da melhor cinebiografia de um músico de jazz, ainda que de um músico criado por sua imaginação. Mas ter realizado a melhor (e mais melancólica) comédia jazzística de todos os tempos não é um demérito, muito pelo contrário. A segunda melhor comédia jazzística, digamos assim, se for mesmo válido enquadrar nessa categoria o genial (mas não melancólico) Quanto Mais Quente Melhor, de Billy Wilder.

Veneração - Allen concebeu Sweet and Lowdown como uma homenagem ao guitarrista francês (de origem belga) Django Reinhardt, nascido Jean Baptiste Reinhardt, que no filme, curiosamente, parece um personagem fantasmático, mais irreal que o irreal Emmet Ray, seu maior admirador sobre a face da Terra. Por que Emmet venera Django em vez de, por exemplo, Charlie Christian? Aficionados mais tradicionalistas e eruditos poderiam estender a cobrança até outros pioneiros da guitarra no jazz, como Johnny St. Cyr e Lonnie Johnson, saídos de New Orleans nos anos 20, ou seja, uma década antes de Emmet Ray fazer seu nome pelo interior dos Estados Unidos. Acontece que Allen, por mais que admire Christie (que precisou de apenas três anos para revolucionar a arte de tocar guitarra, na orquestra de Benny Goodman) e reconheça a força legendária de Eddie Lang (morto, prematuramente, em 1933), considera Django não apenas um instrumentista fora de série, mas acima de tudo uma figura mítica, cuja aptidão jazzística muitos atribuem a seu sangue cigano. Os ciganos não tocam jazz, mas são os negros da Europa.

Christian teve uma carreira meteórica (1939-1942) e, provavelmente, mais seminal que a de Django, até porque era americano e tocava numa banda famosa. O próprio Django, modestíssimo, dizia ter aprendido tudo que sabia ouvindo os discos de Christie. Mas este também disse a mesma coisa de Django. Os dois gigantes da guitarra jamais se encontraram. Django só atravessou o Atlântico depois da guerra, quatro anos após a morte de Christie. Sua dívida maior era mesmo com seus ancestrais ciganos, com a pompe gitane (várias guitarras acelerando ao mesmo tempo) e a mistura que fez com o jazz e a musette francesa, tirando extraordinário partido de um defeito na mão esquerda.

Django teve dois dedos inutilizados por um incêndio numa caravana de ciganos, em 1928. Reaprendeu a tocar praticamente do zero. Arrastando os demais dedos pelas cordas e alcançando oitavas com o polegar, conseguiu extrair de sua guitarra sons singulares, decorando suas canções com belas appogiaturas, vibratos suingadíssimos, glissandos os mais ariscos, tremolos fulminantes e pausas surpreendentes. Tornou-se um mestre de composições langorosas e impressionistas (Nuages, Douce Ambiance, Mélodie du Crépuscule, Parfum, Finesse), mas foi como músico de jazz - o mais célebre e influente exportado pela Europa, em todos os tempos - que entrou para a história.

Pioneiros - Antes, ganhou dinheiro acompanhando o cantor Jean Sablon. Só em 1934, quando montou um formidável grupo instrumental com o violonista Stéphane Grappelli, o Quintette du Hot Club de France, é que o jazz entrou em sua vida. Django chegou a gravar com Eddie South, Benny Carter, Coleman Hawkins e outros, excursionou com a orquestra de Duke Ellington pelos Estados Unidos, em 1946, mas o que deixou de mais expressivo foram suas performances com o quinteto, que, à base de três guitarras, um baixo e um violino, era uma formação sui generis. "Fomos a primeira banda de rock do mundo", pilheriou Grappelli quando o entrevistei durante um Free Jazz, muitos anos atrás. Sem bateria, a percussão era feita pelas cordas - à maneira cigana. Além de terem montado "a primeira banda de rock", Django e Grappelli anteciparam de 23 anos aquela célebre execução do Star-Spangled Banner por Jimi Hendrix, quando, logo depois da guerra, improvisaram uma série de variações em torno da Marselhesa. E sem incendiar as guitarras.

A dupla Django-Grappelli (que só se separou durante a guerra, quando o violonista refugiou-se em Londres e foi substituído, temporariamente, pelo clarinetista Hubert Rostaing) tem o mesmo status de outras históricas parcerias (Dizzy Gillespie-Charlie Parker, Billie Holiday-Lester Young) e pode ser fruída por meio de gravações isoladas ou antologias segmentadas por ano, temporadas ou períodos (como a da Gold Collection, com 40 clássicos gravados entre 1934 e 1937). Desde o início de outubro, contudo, uma caixa, lançada em Londres em pequena tiragem pela Mosaic Records, encerrou a conversa, reunindo em seis CDs a obra completa do cigano e o quinteto: The Complete Django Reinhardt and Quintet of the Hot Club of France, Swing/HMV Sessions 1936-1948.

Em 1948, vale lembrar, foi o ano em que Django perdeu o prumo. Extasiado com a cismática gravação de Salt Peanuts, com Dizzy e Parker, de que só tomara conhecimento recentemente (os franceses tiveram de esperar o fim da guerra para conhecer as novidades culturais americanas do período 1940-1945), tentou acompanhar a rapidez do bebop, mas perdeu-se no caminho. O bebop estava no auge de seu prestígio quando, em 16 de maio de 1953, aos 43 anos, Django morreu. De um trivial enfarte, mas ciganamente. Ao que consta, não foi o primeiro cigano a morrer pescando no Sena. (O Estado de S. Paulo)

 

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