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Há um mito, certamente justificado, de que a via digital barateia custos e, em última análise, leva ao que se pode chamar de "democratização do cinema". Na verdade, não é bem assim, pois resolver o problema da produção não significa resolver também o da distribuição e hoje o nó górdio da questão é o controle que Hollywood exerce sobre os mercados de todo o mundo. Não haverá democratização enquanto persistir esse imperialismo travestido de globalização. Dançando no Escuro é, hoje, o filme que mais representa a opção digital. A Palma de Ouro que recebeu no Festival de Cannes avaliza o que já está sendo definido como cinema do futuro. Dançando no Escuro encerra nesta quinta-feira a 24.ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo. O musical de Lars Von Trier terá uma só sessão no Cinearte, após o anúncio do vencedor (ou dos vencedores) do troféu Bandeira Paulista, exclusivo para os novos diretores, até o terceiro filme, que participam da programação da Mostra. Doze filmes foram escolhidos pelo público e participam da disputa. Os ingressos já estão esgotados, mas se você não conseguiu, não desanime. Dançando no Escuro deve estrear logo nos cinemas. Pelo menos é o desejo da distribuidora Imovision, que espera capitalizar logo os dividendos da discussão que o filme provoca. Não foi o custo que levou o dinamarquês Von Trier a optar pelo digital. É até uma das críticas feitas a ele. O ilusionismo antiilusionista de Dançando no Escuro retoma uma velha lição do inglês Ken Russell nos anos 70 - o mundo de sonhos que se esboroa em contato com a dura realidade. Talvez fosse melhor servido pela suntuosidade da imagem que o próprio Von Trier empregou em Ondas do Destino, antes de aderir ao Dogma, que agora subverte. Se o autor, desta vez, quis usar o vídeo foi pela mobilidade que a câmera digital fornece, pela possibilidade de experimentação, tudo - menos o barateamento da produção. Quem quer reduzir custos não usa cem câmeras numa só cena. Há informações, nunca confirmadas, de que Dançando no Escuro é a produção mais cara da história do cinema da Escandinávia. Segundo a revista francesa Positif, teria custado a fábula de US$ 90 milhões, um budget verdadeiramente hollywoodiano. É um filme que convida à discussão, que mexe com o espectador e tudo isso é positivo. Von Trier, discípulo de Carl Theodor Dreyer, fecha aqui sua trilogia sobre o sacrifício das mulheres, que começou com Ondas do Destino e prosseguiu com Os Idiotas. Todo mundo sabe, mas não custa repetir que ele chantageou Björk para garantir que a cantora e compositora fizesse o papel da protagonista, Selma. Von Trier havia cooptado Björk para fazer a trilha. Ela trabalhou durante quase dois anos no projeto. Von Trier então colocou-lhe o problema. Se ela não interpretasse Selma, ele não faria o filme. Björk cedeu à chantagem, para não perder um trabalho que, sabia, não tinha razão de ser fora do contexto do filme. Como atriz, não é menos do que admirável. Pode-se discutir a Palma de Ouro que o filme ganhou em Cannes, mas não o prêmio de melhor atriz para ela. Selma é a imigrante checa na América. Trabalha numa fábrica, possui uma amiga a quem chama de Cvalda (Catherine Deneuve). Tem um filho pequeno. Está ficando cega, por causa de uma doença congênita. O filho também ficará cego, a menos que faça uma cirurgia. Selma junta dinheiro. Mora num trailer no quintal de um policial americano. Um dia, trocam confidências. Ele revela que dilapidou sua fortuna, está pobre, endividado e tem medo de perder a mulher. Ela fala da cegueira, da doença do filho e das economias de uma vida de trabalho. Voto de silêncio - Você pode imaginar o que ocorre, mas é bom não ir adiante para não quebrar o voto que Von Trier praticamente exigiu dos jornalistas em Cannes. Como idealizador e signatário do Dogma, ele é um dos mais ilustres entre os monges-cineastas da Dinamarca. Cobrou dos jornalistas que também fizessem um voto - o de não revelar o desfecho, sob pena de arruinar o impacto de Dançando no Escuro. O começo é prodigioso, a montagem das cenas gravadas pelas tais cem câmeras no número da fábrica e, depois, no do trem (que homenageia Sete Noivas para Sete Irmãos, de Stanley Donen - a célebre dança dos machados) nunca é menos do que brilhante, a integração de A Noviça Rebelde ao relato e à trilha (por meio da montagem dentro do filme), tudo isso é muito, muito interessante para dizer-se o mínimo. Mas, à medida que o filme avança, o melodrama se superpõe ao musical e termina vencendo. O desfecho é puro dramalhão - e eficiente, porque até os marmanjos perdem a vergonha e assumem que choraram. Há quase seis meses, desde que Dançando no Escuro venceu em Cannes, não se fala em outra coisa senão nesse filme ao mesmo tempo original e piegas. Pois bem. Ele já chegou. Está hoje na cidade. Chega para surpreender, maravilhar e, finalmente, decepcionar. Resta saber se o melodrama de Von Trier realmente anuncia uma revolução cinematográfica. Prêmio - Reunidos no Hotel Blue Tree, transformado em centro nervoso da Mostra, os críticos escolheram hoje de manhã o vencedor do seu prêmio. Dois filmes terminaram polarizando a discussão - Amores Perros, do mexicano Alejandro González IÏarruti, e Código Desconhecido, de Michael Haneke. No desempate, venceu o filme de Iñarruti, que já havia recebido o prêmio da crítica para os filmes que não participavam da competição em Cannes, em maio. Amores Perros volta na programação da Mostra do fim de semana, para o público conferir o acerto da decisão.
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