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Lars von Trier vai na contramão de Hollywood


Catherine Deneuve, Bjork
e Lars von Trier e

Todo diretor de cinema é um manipulador. De Hitchcock, o mestre do suspense que transformou o medo numa das mais belas artes, até Godard, o autor revolucionário que transformou a metalinguagem na essência do seu projeto artístico, todos eles direcionam o espectador para seus objetivos. Com Lars von Trier não é diferente.

Pode-se escrever um tratado sobre Dançando no Escuro só tendo como tema esse mote - Lars, o manipulador. Ele manipulou tudo e todos. Os integrantes da sua equipe, Björk, principalmente, o público, os críticos.

Quando o projeto de Dançando no Escuro começou a tomar forma, Björk ia participar somente da elaboração da trilha. Ela dedicou dois anos ao trabalho. Foi quando o diretor lhe apresentou seu ultimato. Se ela não aceitasse o papel de Selma, a protagonista, ele desistiria do filme.

Björk tentou dissuadi-lo, argumentando que não era atriz. Von Trier permaneceu irredutível. Ela cedeu, não queria jogar fora dois anos de atividade frenética. Von Trier não deixa de ter feito a coisa certa. Björk não é menos que extraordinária como Selma. Merece o prêmio de melhor atriz que recebeu em Cannes. Merece o Oscar.

Selma é uma imigrante checa na América. Está ficando cega. Junta dinheiro para pagar a operação do filho, que ficará cego, também, a menos que faça essa tal de cirurgia corretiva. O filme, supostamente, passa-se na América, embora tenha sido todo rodado na Dinamarca. Acuada, Selma chega ao assassinato. A cena é um modelo de manipulação da emoção do público. Tudo isso chega quase ao limite do insuportável.

E há, claro, a manipulação dos críticos, feita de 1001 maneiras, até mesmo por meio dessa operação marqueteira que transformou Dançando no Escuro no emblema das novas tecnologias que vão mudar a face do cinema.

Não há quem não tenha ouvido falar das cem câmeras digitais de vídeo na coreografia da fábrica - embora seja difícil encontrar ali cem diferentes pontos de vista para justificar a profusão de câmeras. Diretores em geral recorrem ao vídeo para baratear custos. Não foi o que pesou na decisão de Von Trier. Ele fez o filme em vídeo, com cem câmeras digitais, para ousar. Signatário do Dogma 95, subverteu o próprio dogma.

Pelas regras do documento, não são permitidos filmes de gênero. Von Trier, ex-dogmático, mistura logo dois. O filme é um musical, embora não seja um musical tradicional, e um melodrama. É até o que Dançando no Escuro tem de mais discutível. O melodrama termina prevalecendo no resultado final, no apelativo desfecho que faz as platéias chorarem. A nova tecnologia, a audácia, o marketing - todos colocados a serviço de uma dramaturgia, afinal de contas, tradicional, legitimada - ou erigida em vanguarda - pela Palma de Ouro que o filme recebeu em Cannes.

Dançando no Escuro encerra a trilogia que começou com Ondas do Destino (e teve prosseguimento com Os Idiotas). O sacrifício da mulher, o inferno e a santificação. O ilusionismo do musical (com suas citações ao cult melodramático A Noviça Rebelde, de Robert Wise), tratado de maneira antiilusionista - os números de canto e dança, com exceção daqueles no palco do teatro, são fantasias de Selma que se esboroam ao contato com a dura realidade, uma lição que Von Trier aprendeu, não de seu mestre Carl Theodor Dreyer, o cineasta dinamarquês que radiografou a alma, mas de Ken Russell, o enfant terrible inglês do começo dos anos 70.

Von Trier é manipulador e marqueteiro. Vai na contramão de Hollywood para fechar um círculo que, afinal de contas, aponta mais para o conhecido e o já visto do que para o radicalmente novo. Mas é o filme que você precisa ver. Dançando no Escuro levanta questões que obrigam o espectador e o crítico a tomarem partido. (Luiz Carlos Merten/ Agência Estado)

 

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