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"Bicho de 7 Cabeças" consagra-se em Brasília
Rodrigo Santoro revelou-se um ator capaz de fazer escolhas ousadas - e de sustentá-las

Rodrigo Santoro interpreta Neto

Rodrigo Santoro foi vaiado no domingo à noite, no Cine Brasília, antes da sessão oficial de Bicho de 7 Cabeças no 33º Festival do Cinema Brasileiro. Ele subiu ao palco sob forte vaia do público, formado preferencialmente por jovens universitários. Galã, bonito, global, Rodrigo foi vítima desse ódio, mais que preconceito, que as cabeças pensantes do País votam à Rede Globo, por tudo o que ela representa de atraso, travestido de modernidade. A Globo colhe o que plantou, por seu monopólio da informação, por sua aliança com os reacionários. Santoro se intimidou. Ficou mudo no palco, ao contrário de seus colegas globais, Cássia Kiss e Othon Bastos, que foram ovacionados pelo público. No final, evaporou-se. Santoro deveria ter confiado mais em si mesmo e no filme. Deveria ter esperado para peitar o público. Teria sido carregado em triunfo.

Foi emocionante ver a explosão do público no fim de Bicho de 7 Cabeças. Havia espectadores chorando de emoção. O clima era de ´já ganhou´. Só mesmo se o júri do 33.º festival for muito incompetente o filme de Laís Bodanzky deixará de colher amanhã à noite uma chuva de Candangos. Os olhos brilhando de felicidade, Laís contou uma história protagonizada por Santoro. No fim da sessão, ao sair do cinema, ele teve a frente cortada por um sujeito enorme - e olhem que o próprio Santoro está longe de ser franzino. Chorando, o cara lhe disse que foi um dos que o vaiaram, mas agora queria pedir-lhe desculpas.

Nasceu um ator em Bicho de 7 Cabeças. Santoro é maravilhoso como Neto e, por mais que o mérito da direção de atores tenha de ser atribuído a Laís - todo o elenco é prodigioso, sem uma nota em falso -, convém não subestimar a contribuição do próprio astro global. Depois desse filme, ele já fez outro que se antecipa importante - Abril Despedaçado, de Walter Salles. Tomara que continue fazendo escolhas certas para que, daqui a alguns anos, superado o preconceito, possa ser reconhecido como o que já é, um ator capaz de fazer escolhas ousadas - e de sustentá-las.

Grande Laís. Ela participava de um grupo que discutia loucura e cidadania quando descobriu o livro, O Canto dos Malditos, em que Austregésilo Carrano relata sua experiência no sistema manicomial brasileiro. Carrano conheceu o inferno. Sobreviveu para contar sua história. Virou ativista do movimento antimanicomial. Laís imediatamente identificou ali a história que queria contar. No começo de Bicho, um pai descobre um cigarro de maconha no bolso do filho.

Considerando-o um viciado, uma ovelha negra, interna-o para desintoxicação. O sistema é podre. Há o tema da loucura, a lenta história da destruição de uma vontade. Há essa vontade de relatar, denunciar o que ocorre por trás dos muros e paredes dos institutos psiquiátricos. Mas há também a vontade de falar de relações familiares, do conflito de gerações.

Luiz Bolognezi, marido e parceiro de Laís - fizeram juntos Cinema Mambembe -, é o roteirista. Ele achava que só o tema da casa de loucos era insuficiente. Procurava um outro tema. Descobriu-o na carta que o pai de Carrano escreveu ao filho. O filme inverte a situação e começa com a carta que Othons Bastos, o pai, recebe do filho, a quem internou. Essa carta contém uma acusação.

O texto, senão todo, pelo menos parte dele, foi retirado de um velho samba de Lupicínio Rodrigues, Judiaria - "as coisas ficam melhores quando a gente consegue esquecer, te mostro a porta da rua, vai embora antes que eu te bata".

Com Cinema Mambembe, Laís e Bolognezi percorreram o Brasil mostrando filmes e discutindo a relação do público com o cinema brasileiro.

Traçaram, a partir daí, um retrato do País. Era um filme interessante, talvez até bom. Mas de Cinema Mambembe ao Bicho o salto é enorme. É uma obra de maturidade técnica e artística. Laís (e Bolognezi, com certeza) foram buscar elementos na contracultura dos anos 70 - as drogas, a contestação, a antipsiquiatria -, mas fizeram um filme poderoso na ótica dos 90 e, mais do que nos 90, na ótica do terceiro milênio que já está começando. Um filme forte, denso, ao mesmo tempo narrativo e experimental, um trabalho em que o texto, a música e a imagem se completam numa estrutura contemporânea capaz de arrebatar desde o espectador da MTV até o público mais clássico, que também ficará tocado por essa rara experiência.

R.D. Laing, o antipsiquiatra, é uma referência importante, até fundamental. Nos seus estudos sobre a esquizofrenia, ele via a loucura como produto da sociedade e, principalmente, da família. O filme é perfeito como evocação das idéias de Laing. Milos Forman foi outra referência forte, por meio de Um Estranho no Ninho, o filme que Laís usou para mostrar à sua equipe o que pretendia fazer. Quem assistir a Vida em Família, também vai traçar uma linha direta que vem desde aquele filme de Ken Loach que marcou época no começo dos anos 70 - o primeiro grande impacto do importantíssimo diretor inglês. Nesse caso, é coincidência, mais que referência. Laís nunca viu Vida em Família, por mais que seja possível lançar pontes entre os dois filmes.

Laís enfatizou diversas vezes nas coletivas e individuais que deu aqui que o Bicho não teria sido possível sem o apoio que recebeu da Fabrica, o braço da Benetton para o cinema. Os investidores brasileiros não queriam ligar seu nome a um filme que trata de temas tão candentes - família, drogas, loucura. O filme foi feito com pouco dinheiro. O apoio da Fabrica e de uma fundação suíça, Montecinemaverità, também dirigida por Marco Müller, o homem por trás da marca Fabrica, tornaram viável o filme que a diretora gostaria de lançar logo no começo de 2001. Ela ainda espera captar, no fim do ano, por meio da Lei do Audiovisual, a verba indispensável para um bom lançamento. Quer lançar bem o Bicho. Não um grande circuito, esses de 100, 200 cópias. Quer trabalhar um circuito mais reduzido e quer, principalmente - o que não deixa de ser uma herança de Cinema Mambembe -, investir no circuito alternativo, mostrando o Bicho nas praças, nas universidades e nas pequenas cidades, aquelas em que o cinema não chega.

Os prêmios que o filme certamente receberá esta noite, na festa de encerramento do 33º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, poderão impulsionar o empresariado brasileiro a investir nessa obra que já é tão prestigiada. Esses investidores precisam ousar mais, sem medo de associar suas marcas a uma obra ousada e nem um pouco superficial como o Bicho. É o que tradicionalmente faz a Benetton. O Bicho é ´o bicho´. Pode aspirar a todos (todos!) os prêmios desse festival, menos o de melhor atriz, porque, a rigor, não existe um grande papel feminino. Mas Cássia Kiss seria uma bela escolha de atriz coadjuvante.

Mais difícil é selecionar quem é o melhor ator coadjuvante do Bicho. Aparentemente, seria Othon Bastos, genial, como quase sempre. Mas há Linneu Dias, numa participação fantástica, e Gero Camilo como Ceará, o louquinho manso cujas cenas são daquelas de arrebentar corações e mentes. O júri vai ter trabalho, a expectativa é de que faça a coisa certa. (Luiz Carlos Merten/ Agência Estado)

 

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