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Houve dois grandes vencedores na festa de encerramento do 33º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, ontem à noite, na Sala Cláudio Santoro do Teatro Nacional. Houve, o que é raro em festivais nacionais ou internacionais, sintonia total do júri, da crítica e do público nas categorias de longa e curta-metragem em 35 milímetros. Laís Bodanzky foi a dona da festa. Bicho de Sete Cabeças, que ela adaptou do livro O Canto dos Malditos, de Austregésilo Carrano, ganhou nas categorias de melhor filme, direção, ator (Rodrigo Santoro), ator coadjuvante (Gero Camilo) e fotografia (Hugo Kovensky), incorporando a esses prêmios principais outros paralelos, mas não menos importantes -- o de melhor filme da crítica e do público, o do jornal Correio Brasilense para Rodrigo Santoro e o da Andi, a associação nacional que defende os direitos da infância e da adolescência, por sua contribuição à discussão das violações desses direitos no País. No curta, a vitória de Renê Sampaio não foi menor. Ele também levou os prêmios do júri, da crítica e do público com Sinistro. Além dos Candangos de melhor filme e direção, Sinistro ganhou o prêmio de fotografia (para André Luís da Cunha, se bem que, nesse caso, o júri também estivesse premiando o trabalho do fotógrafo em Outros, de Gustavo Spolidoro) e dois outros prêmios importantes - o da Assembléia Legislativa do Distrito Federal e o prêmio aquisição do Canal Brasil, que incorpora o filme ao seu acervo. Laís foi necessária, absoluta e também generosa. Em seu discurso de agradecimento, dividiu o prêmio de direção com outros dois estreantes que também participavam da competição, Lina Chamie, diretora de Tônica Dominante, e Toni Venturi, diretor de Latitude Zero, vendo na força desses novatos - ela mesma assina com o Bicho seu primeiro longa -, uma nova etapa no processo de fortalecimento do cinema brasileiro. A nova geração pede passagem e Laís agradeceu aos veteranos que desbravaram o caminho. Citou Vladimir Carvalho, o documentarista de Barra 68, também super premiado (melhor longa brasiliense e melhor filme para uma entidade que se dedica à preservação da memória do cinema brasileiro), e a geração de seus pais. O pai, o cineasta Jorge Bodanzky, não cabia em si de felicidade pelo êxito da filha. "Laís é sua obra-prima", disse o repórter da Agência Estado e ele concordou, emocionado. Pode-se discutir algumas decisões do júri presidido por Wilson Cunha, do Canal Brasil, mas, de resto, os jurados fizeram a sua lição de casa direitinho. A vitória de Bicho de Sete Cabeças foi acachapante. Quem estiver despeitado - e quem perde quase sempre fica despeitado -, deve pensar no significado dessa tríplice vitória. Não havia nada melhor do que o Bicho na competição de longas do 33.º Festival. Embora o grande Nélson Rodrigues gostasse de dizer que toda unanimidade é burra, desta vez ela não foi. Talvez houvesse filmes melhores na categoria de curtas, mas a premiação de Sinistro em absoluto constitui o que se poderia considerar um equívoco. Renê Sampaio é um diretor talentoso, que combina audácia dramatúrgica à vontade de ousar, estilisticamente. Leva jeito para suas futuras investidas na direção. Todo mundo que subia ao palco do Teatro Nacional fazia seu discurso emocionado e até inflamado. Isso alongou a cerimônia, mas ninguém arredou pé. Todos queriam ver a festa até o fim. O momento mais politizado ficou por conta dos realizadores de 16 mm, que aproveitaram a oportunidade para lavrar seu protesto. "Não importa a bitola, o importante é o prazer - de ver e fazer filmes", foi a bandeira que eles desfraldaram na grande noite. O júri de 16 mm premiou, por unanimidade, A.M.A. Ceará, de Pedro Martins, como melhor filme. André Francioli foi o melhor diretor, por O Mundo Segundo Sílvio Luiz. Mário Kuperman ganhou uma menção especial por Do Tejo ao Tietê, e ainda houve um prêmio especial para o ator José Marinho de Oliveira, de Arábia. Os realizadores de 16 mm reivindicaram não só apoio para fazer filmes, mas também melhores condições para mostrá-los. Querem, entre outras coisas, que a mostra de 16 mm seja incorporada à programação do Cine Brasília, o templo do festival. Ampliação - Os demais prêmios de curta e longa em 35 mm (alguns deles em 16 mm ampliados) revelaram a disposição do júri de diversificar as escolhas, não levando à super concentração de prêmios em Sinistro e Bicho de Sete Cabeças. Entre os curtas, O Sanduíche, de Jorge Furtado, ficou com o prêmio de montagem (para Giba Assis Brasil), Flávio de Souza foi o melhor roteirista (por Almas em Chamas, de Arnaldo Galvão), Duda Mamberti, o melhor ator (por Tropel, de Eduardo Nunes) e Rita Assemany, a melhor atriz (por Pixaim, de Fernando Belens). Entre os longas, Luciana Rigueira foi a melhor atriz por Brava Gente Brasileira, de Lúcia Murat, que também recebeu o prêmio de música (para Livio Tragtenberg). Imara Reis foi a melhor coadjuvante (por Minha Vida em Suas Mãos, o filme de Maria Zilda Bethlem dirigido por José Antônio Garcia) e aí o júri pisou na bola, pois a composição de Cássia Kiss é muito melhor em Bicho de Sete Cabeças. Eduardo Escorel foi o melhor montador (por O Chamado de Deus, de José Joffily) e Ana Maria Abreu, a melhor diretora de arte (por Tônica Dominante, de Lina Chamie). Foi um bom, um belo festival, com algumas exceções, claro. O longa Minha Vida em Suas Mãos só entrou na competição depois que Tolerância, escolhido pela comissão de seleção, foi interditado pelos organizadores porque, no começo do festival, o filme de Carlos Gerbase já teria estreado nas salas de quase todo o Brasil. Mas, tirando essa nota em falso, os longas concorrentes apresentaram um retrato diversificado da potência do cinema brasileiro atual. A audácia autoral de Toni Venturi, a reflexão política de Lúcia Murat, o radicalismo corajoso de Lina Chamie e a incursão de José Joffily pelo documentário são, em maior ou menor grau, defensáveis e até bons. E há o filme de Laís Bodanzky, maravilhoso. Bicho de Sete Cabeças talvez seja o melhor filme brasileiro da década, desde o início da retomada. São poucas as obras, documentárias e de ficção, que atingem essa força. Não é só um bom, um grande filme brasileiro. É um bom, um grande filme que se pode alinhar entre os melhores feitos em todo o mundo nas safras recentes. Laís participava de um grupo que discutia loucura e cidadania quando descobriu o livro de Carrano. Imediatamente percebeu que aquela era a história que queria, que precisava contar. É uma característica desse novíssimo cinema brasileiro consagrado em Brasília 2000. Filmes podem ser experiências viscerais, vitais mesmo. Quando alguns diretores disseram que não podiam viver sem ter feito o seu filme, não era só uma frase de efeito. Laís percebeu na história de Carrano, esse homem que conheceu o inferno e o horror do sistema manicomial brasileiro e sobreviveu para contar sua experiência, o ponto de partida para uma belíssima reflexão sobre o País. Ela é a autora indiscutível do filme, mas destacou, no palco do Teatro Nacional, a importância do trabalho em equipe. Reservou um agradecimento especial para o roteirista e companheiro. Luiz Bolognesi foi o parceiro de todas as horas, que a ajudou a segurar toda a barra de um projeto árduo, difícil, mas gratificante. O beijo final dos dois foi o final feliz do 33º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
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