Busca

Pressione "Enter"

Cobertura completa Sites de cinema Grupos de discussão Colunistas Os melhores filmes Notas dos filmes Todos os filmes Roteiro de cinema O que está passando no Brasil



Otar Iosseliani filma desejo de liberdade em "Adeus Lar, Doce Lar"



Otar Iosseliani guarda boas recordações de São Paulo. Esteve aqui há quatro anos para apresentar Brigadeiros na Mostra Internacional de Cinema de 1996. Pergunta por Leon (Cakoff) e Renata (Almeida), organizadores do evento. Fica contente de saber que Tempo de Embebedar Cavalos, de Bahman Ghobadi, foi um dos vencedores da mostra deste ano.



Em maio, no Festival de Cannes, Iosseliani era jurado do prêmio Caméra d'Or, para diretores estreantes. O prêmio foi dividido entre dois filmes iranianos - Djameh, de Hassan Yekpatanah, e justamente Tempo de Embebedar Cavalos.

Iosseliani fala pelo telefone com a reportagem. Está em Paris, onde vive metade do ano. A outra metade passa na Geórgia, onde nasceu. Se pudesse, viveria sempre lá e só ocasionalmente iria a Paris, cidade que ama. Mas o caos econômico que se seguiu à derrocada do império soviético o impede de levantar recursos para seus filmes na Geórgia. Vive na França porque é aí que tem seus contatos, sua produtora.



O assunto é Adeus, Lar Doce Lar, seu belo filme cujo título original é "Adie, Plancher des Vaches!". Iosseliani explica o que quer dizer 'plancher des vaches'. É uma expressão muito usada entre marinheiros. Quando estão muito tempo no mar e vão aportar em terra firme, eles dizem que vão 'plancher des vaches'. Ao dar adeus ao enraizamento, ao pôr os pés no chão, à terra firme, Iosseliani explica o partido de seu filme. Mais do que um filme sobre a liberdade, Adeus, Lar Doce Lar é um filme sobre o desejo da liberdade. Pode parecer a mesma coisa, mas não. Há, aí, uma pequena sutileza. Iosseliani acredita que a liberdade absoluta é impossível, mas o desejo de liberdade do homem é legítimo. E explica o que é a liberdade para ele - "É o direito à preguiça."





Foi a mesma coisa que Krzysztof Kieslowski disse ao repórter em Veneza, quando apresentou A Liberdade É Azul no festival e anunciou que tão logo concluísse a trilogia das cores ia parar com o cinema. Kieslowski também queria ter direito à preguiça. Iosseliani acrescenta - "Ganhar dinheiro fazendo o que gosta é uma aspiração do ser humano, mas o sonho mesmo é não fazer nada." Ele faz o que gosta - filma. Foi marinheiro, por um breve espaço de tempo, dois, três anos. Desde então tinha sempre a expressão 'plancher les vaches' na cabeça. Resolveu criar uma história que a sustentasse ou lhe desse sentido. E surgiu, assim, a trama sobre dois rapazes. Um que mora no castelo e o outro, pobre (mas não miserável). O que mora no castelo acha que a felicidade está no estilo de vida do outro, que, por sua vez, sonha com a vida do senhor do castelo. "Ambos se enganam, porque a felicidade não está em nenhum dos dois lugares; a felicidade não está em parte nenhuma, está em nós, que temos de saber conquistá-la", diz o diretor.





Buñuel - Numa das cenas mais importantes do filme, Iosseliani causa estranhamento ao mostrar um pássaro que atravessa um salão do castelo. A ave caminha desajeitada, olhando tudo ao redor. Representa, para o diretor, o olhar agudo e crítico que um filósofo lançaria sobre o mundo. A ave é o filósofo e o plano lembra aquele outro, famoso, da vaca no salão de "A Idade do Ouro", de Luis Buñuel. Iosseliani desculpa-se. "Acho que conheço bastante cinema, até porque estudei numa academia de cinema, mas tenho de confessar que conheço pouquíssimo Buñuel; vi só dois filmes dele e neles não havia essa imagem da vaca a que você se refere." Mas também diz - "Não causa espanto para mim; acho que artistas podem chegar às mesmas imagens e até às mesmas soluções, sem que um esteja influenciando o outro; há coisas que são ditadas pela época, pelo momento que vivemos."

Há um elemento forte de onirismo que desemboca no mais puro surrealismo em Adeus, Lar Doce Lar.



Iosseliani não diminui a importância do surrealismo de Buñuel e Salvador Dalí, nem o dos dadaístas. Em seus filmes anteriores, diversas vezes ele se referiu a René Clair e o diretor francês, como sabem os cinéfilos, fez nos anos 20 o filme - Entrac'Acte - que é o próprio manifesto dada. Mas quando fala em surrealismo, Iosseliani prefere ir à origem - que situa em Homero. "Aquele imenso pacote que invade a cidade de Tróia é surrealismo puro; e o mesmo se pode dizer das aventuras de Ulisses, quando volta para casa."

Por menos original que seja a pergunta, o repórter não resiste e tenta saber de Iosseliani por que ele filma. A resposta vem célere. "Filmo para lançar pontes que ajudem a comunicação entre as pessoas; filmo para mostrar para elas, e para mim mesmo, que não estamos sozinhos; um filme é uma mensagem que a gente lança ao mar, só que a garrafa aqui é celulóide; alguém vai receber e talvez assimilar essa mensagem, vai dialogar com ela, completá-la, isso é o que me fascina no cinema, essa possibilidade de comunhão."

É um belo contador de histórias e não apenas no cinema. Conversar com Iosseliani é um prazer.



De repente a conversa cai num cineasta não da Geórgia, onde Iosseliani tem suas origens, mas da Ucrânia, ali perto - Alexandre Dovjenko. O Encouraçado Potemkin, de Serguei M. Eisenstein pode ser o filme russo mais importante de todos os tempos, por sua contribuição ao desenvolvimento do cinema. Numa fase mais recente, Andrei Roublev, de Andrei Tarkovski, pode ser igualmente grande (ou emblemático). Mas o mais belo, o mais maravilhoso, o mais emocionante filme russo de todos os tempos é A Terra, de Dovjenko.

Ele concorda. Foi aluno de Dovjenko. Define-o como um personagem essencialmente trágico. "Era o mais adorável dos homens - generoso, sonhador, utópico." Fazia filmes porque acreditava no ideal de felicidade que seria proporcionado pelo comunismo, em seu estágio final, quando tivesse sido abolida a luta de classes. Esse ideal foi aviltado pelo stalinismo. "Alexandre culpava os burocratas do sistema, nunca o próprio sistema." Quando tomou consciência do horror, já era tarde. Uma vida de tragédia, mas uma obra maravilhosa. É o que leva Iosseliani a uma reflexão final. "O cinema é um meio muito poderoso; o artista pode ser um sonhador, é até bom que seja, mas não pode ser ingênuo."



O desejo de liberdade de Adeus, Lar Doce Lar não é produto de uma mente ingênua. É antes o resultado de uma mente lúdica - e lúcida.
(Luiz Carlos Merten/ Agência Estado)

 

Copyright © 1996-2000 Terra Networks, S.A. Todos os direitos reservados. All rights reserved.