|
Se o melhor filme de um cineasta é, como se diz, o resumo da ópera, então Trinta Anos Esta Noite merece o status que carrega como o clássico de Louis Malle. Tudo está lá. O tabu representado no alcoolismo que desemboca no suicídio, provocativo como o incesto de Um Sopro no Coração ou a prostituição infantil em Pretty Baby - Menina Bonita; a chave existencial de um protagonista em franco declínio e desespero como em Os Amantes, também com sua famosa cena de sexo oral; os longos diálogos e monólogos também para se chegar à alma dos personagens, mais tarde recurso tão belo em My Dinner with André e Tio Vanya em Nova York. Levados ao paroxismo, temas e formas ganham um resultado antológico em Trinta Anos.... Rever esse filme tem gosto de nostalgia, de saber que não se faz mais cinema com tal requinte. É para celebrar que volta agora, em cópia nova, para provar que ainda está de pé. Louis Malle passou à história - morreu em 1995, aos 63 anos - como o cineasta do escândalo. Rótulos fazem bem e mal. É verdade que tenha sempre alimentado gosto explícito pela provocação, mas a fama muitas vezes parece vir primeiro à qualidade da obra. Daí a possível injustiça. A polêmica também estaria na base de 'Trinta Anos Esta Noite', na adaptação do romance 'Le Feu Follet', o fogo-fátuo, de Drieu de La Rochelle. O escritor era considerado ultraconservador e se alinhou ao nazifascismo. O filme foi tido como reabilitação do autor. Portanto, visto com maus olhos. A resposta está na densidade da obra. No mais, até sugere mea-culpa na exaltação do suicídio, também contestada no período. Uma leitura atenta da carreira de Malle costuma desbancar esse mito, o da polêmica pura e simples, assim como aquele que incorpora o diretor à turma da Nouvelle Vague. O Malle cineasta nasceu com os colegas Godard, Chabrol e Truffaut, mas nunca foi inteiramente ligado a eles e muito menos aceito sem restrições. Os 'turcos' dos Cahiers du Cinéma, como eram chamados, enxergavam nele um herdeiro dos acadêmicos da geração anterior, como Claude Autant-Lara e Julien Duvivier. Como acreditar nisso vendo os primeiros minutos de 'Trinta Anos Esta Noite'? Maurice Ronet é Alain Leroy, numa antológica interpretação. Está na cama com uma bela e desapontada mulher. Não tem forças para prosseguir no amor e levanta envergonhado. Ela tenta reaver seu humor. Diz que foi ótimo. Mas o rosto de Leroy é uma máscara sombria de fracasso e dor. Será sempre assim, no filme todo, ou cada vez pior, como a atestar a descida ao inferno de um homem na chegada aos 30 anos - daí o título nacional. O desespero tem uma causa, o alcoolismo. Não é dos temas mais freqüentes do cinema. É fácil entender o que interessou Malle no livro de Rochelle. Mas seria simplista apontar apenas o álcool. Há um universo ruindo em volta de Leroy, da loucura que ele é obrigado a dividir no sanatório onde se trata, à decadência da burguesia da qual já fez parte. Leroy, ao ser a vítima e ao mesmo tempo guia do espectador nesse painel, faz lembrar com distância o jornalista Marcello em 'La Dolce Vita', com a morte aqui a substituir a dissipação do personagem de Fellini. Como este, o protagonista de Malle se lança a um reencontro com o mundo de que precisou se apartar depois do vício e do abandono da mulher. Volta a Paris, reencontra velhos amigos e jovens que parecem alimentar fantasias de mulheres ricas, fãs e namoradas, entre elas, Jeanne Moreau. O papel desta é breve, mas tem força. É a voz crítica, que bate forte na consciência do homem decidido a abandonar tudo. Malle não deixaria sua musa, e a de muitos como Truffaut, passar despercebida. Junto com Ronet, ela protagonizou o belo 'Ascensor para o Cadafalso', também recentemente exibido em cópia nova. O caminhar de Moreau por uma Paris noturna, enquanto aguarda o assassinato do marido pelas mãos de Ronet, seu amante, lembra o trajeto de Leroy aqui. Em 'Ascensor' havia o improviso fundamental de Miles Davis. Em 'Trinta Anos...', Erik Satie assinou as melodias que se repetem como a diferenciar os momentos mais poéticos na despedida do protagonista dos mais sinistros. O ponto alto desse pretendido adeus é o jantar em que ele comparece esgotado. Lá está uma de suas amantes, uma paixão verdadeira agora casada com um milionário pernóstico. Leroy ironiza, provoca, ofende e bebe até cair. Ninguém dá conta de sua real intenção ao participar da festa. Fica nítido para ele que não pode mais fazer parte daquele mundo e que este também não está interessado em sua triste figura. Mais tarde, o pensamento será esclarecido em palavras. Malle se utiliza de Leroy também como uma personalidade incômoda, doente, que deve ser expurgada por não caber mais no figurino das altas rodas, permissiva a ponto de usufruir dela até o limite e depois se livrar. Leroy também ascende à intolerância e piedade, e o diretor gosta de trabalhar muito com a primeira - a lembrar o garoto nazista que se apaixona por uma judia em 'Lacombe Lucien' -, mas não exagerar com a segunda. Não há traço de maniqueísmo ou jogo com emoções fáceis, provável quando o tema tem tanto apelo quanto o alcoolismo. Malle é rigoroso e troca o emocional sutil pelos gestos conturbados e desesperados num equilíbrio com momentos mais meticulosos do protagonista. Talvez herança de Robert Bresson, de quem foi assistente no início de carreira. Não é uma obra fácil, para entreter, mas como se sabe, Malle nunca formulou tal objetivo como proposta de cinema.
|
||
Copyright © 1996-2001 Terra Networks, S.A. Todos os direitos reservados. All rights reserved.
|