Maio de 1968, França. O país assiste atônito à grande manifestação estudantil que recobre as ruas de Paris com um milhão de adesões. Greves na companhia de eletricidade, transportes urbanos, trens, correios, fábrica e demais representantes do setor privado aumentam o clima de revolta e protesto. E onde estaria Antoine Doinel em meio ao caos? Por certo bem longe de seus compatriotas da Sorbonne, segurando a mão de sua Christine, certo de ter encontrado o amor definitivo.Anacrônico e romântico, na definição de seu criador, o cineasta François Truffaut, o personagem é também o contraponto de um período em ebulição. O mundo se move, mas Doinel prefere o aconchego de um lar estruturado, um trabalho qualquer que lhe renda a sobrevivência e a presença de uma meiga esposa. É assim desde Antoine e Colette, o primeiro movimento da saga adulta e, na sua seqüência, Beijos Proibidos. Os dois filmes reestréiam nessa sexta-feira.
Vê-los tem sabor de nostalgia, de uma França e um tempo que não voltam mais. É uma rara chance ao cinéfilo. Antoine e Colette é um episódio realizado em 1962 para o longa-metragem Amor aos 20 Anos. Truffaut recebeu o projeto de encomenda, como mais quatro jovens cineastas da época, entre eles o alemão Marcel Ophüls e o polonês Andrzej Wajda. Uma sucessão de fotos de Cartier-Bresson ao final dá o ligamento ao painel. O cineasta francês viu no convite a possibilidade de dar seqüência à trajetória de Doinel, o menino rebelde e de infância marcada de Os Incompreendidos. O filme de estréia do cineasta também está em cartaz na cidade. Como os seguintes, é tributário da vida real de Truffaut, que adotou o ator Jean-Pierre Léaud como seu representante mais afinado, o alter ego.
Junte-se Beijos Proibidos, realizado seis anos depois do curta-metragem, e se tem um belíssimo painel de conflitos da passagem da adolescência para a vida adulta. Não por acaso, as obras dialogam, a confirmar a intenção.
Conceito de família desregulado, exército, carência e confusão amorosa. O Doinel de Antoine e Colette representa os primeiros passos nessa burlesca, mas também um tanto trágica trajetória. Na biografia que Antoine de Baecque e Serge Toubiana renderam ao cineasta está a idéia de que o personagem deveria inicialmente ser muito próximo do perfil de seu criador. Seria um jornalista refletindo sobre sua época, como Truffaut, atuante numa crítica feroz de cinema nos Cahiers du Cinéma. Decidiu por trocar a óbvia aproximação e Doinel surge como amante da música clássica e funcionário da gravadora 'Phillips'.
É pelo amor à música que conhece Colette (Marie-France Pisier) e seu descaso. Doinel está apaixonado, mas não encontra receptividade. Freqüenta bordéis para aplacar seu desejo. Muda-se para a frente da casa da amada e é prontamente acolhido pelo padrasto (François Darbon) e pela mãe da moça (Rosy Varte). A necessidade de ser aceito e adotado pela família, tanto quanto pela jovem, é cara ao personagem e vai se repetir no demais filmes com Doinel. A explicação, claro, é recorrente na infância de Truffaut - o menino que não conheceu o pai, não recebia amor da mãe e no máximo tinha a simpatia do padrasto. Mesmo assim, este o deixou amargar uma noite na cadeia. Mas Truffaut reconhece a autocomiseração e carimba um final encantadoramente irônico. Nunca esqueceria o primeiro amor, como fica evidenciado em O Amor em Fuga, o final da saga Doinel.
O cineasta, ainda segundo Baecque e Toubiana, considerou magnífico o resultado de Antoine e Colette e se arrependeu de não ter feito dele um longa-metragem. De uma certa forma realizaria esse desejo seis anos depois com Beijos Proibidos. A estrutura dramática é a mesma do episódio anterior, acrescida de outros temas tocantes à realidade do cineasta - agora muito mais refinada. Há inclusive o cômico e dolorido encontro do personagem com Colette, acompanhada do marido e da filha. Começa com Doinel dando baixa do serviço militar com uma advertência de comportamento por sua rebeldia. É a referência da participação de Truffaut na guerra, experiência que marcou duramente o diretor.
A partir daí, o ciclo inicial se repete. Ainda fardado, Doinel sai da caserna direto para os braços de uma prostituta, para em seguida procurar seu amor de outrora. Christine (Claude Jade) também mora com os pais. Está viajando de férias - ou ao menos é essa a desculpa - e eles aproveitam para articular um emprego para o soldado recém-liberado. O posto de vigia noturno de um hotel não dá certo, mas acaba por promover um encontro do jovem com um detetive particular. Este lhe arranja uma vaga na agência. O ofício é bizarro para um jovem atrapalhado, fora de sintonia com seu tempo e que vive nas nuvens, como se diz.
Mas é na investigação de um caso que ele conhece madame Tabard (Delphine Seyrig), um vulcão de mulher madura, cujo marido é um poço de problemas, um 'dinossauro' como o apelidaram suas funcionárias. Doinel está em êxtase pela figura da esposa experiente, refinada e sedutora. Ela se insinua, mas ele foge amedrontado. Quando a atração finalmente é consumada, é só para confirmar o que já se suspeitava. Doinel prefere a doçura e a pureza do amor adolescente à aventura descompromissada.
Parece um painel restrito da paixão, dois jovens comuns buscando a felicidade. Mas Truffaut, ainda que parta de um veio pessoal, não busca uma visão egoísta e superior devido à sua própria história de dramas e tragédias. Beijos Proibidos atinge uma dimensão coletiva de conflitos amorosos graças a brilhantes subplots armados no decorrer do filme. Eles chegam a todo momento na agência de detetives, no caso do homossexual que procura pistas do amante desaparecido e o descobre casado e com filhos ao senhor Tabard, o 'dinossauro', que quer saber por que ninguém o ama, inclusive a mulher.
Um filme sobre o amor, mas também político. Não no senso dos estudantes da Sorbonne, da 'manif', que explodiria alguns meses depois das filmagens. Baisers Volés rende algumas homenagens. A primeira e mais óbvia a Charles Trenet, o 'chansonnier' morto em fevereiro. O título original foi tirado de sua famosa Que reste-t-il de nos amours, que embala os créditos iniciais. Nesta tomada também está outra lembrança, a mais significativa para entender o momento em que o filme surge. A câmera, parada, mostra a fachada da Cinemateca Francesa e sua porta fechada. Ao final dos créditos, a dedicatória a Henri Langlois.
O fundador e diretor da instituição cinéfila era adorado por Truffaut e os demais integrantes da Nouvelle Vague. Seu desligamento do cargo por uma turma comandada por André Malraux, o escritor e poderoso ministro da cultura de De Gaulle, ganhou ares de guerra urbana. O cineasta liderou uma passeata, foi ferido, mas conseguiu que seu mestre retornasse ao posto. É a cena que Christine vê pela televisão. Depois, partiria para outro front, o cancelamento do Festival de Cannes, atingido pela turbulência em Paris. Mas isso é outra história e vale um filme. Doinel, claro, também não participou do momento. Preparava-se para o casamento com Christine e depois para sua primeira crise em Domicílio Conjugal, de 1970, quando trai a esposa. A inocência do romântico começava a ser roubada.