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Amores Brutos traz punição bíblica à mexicana
É uma pena que o título nacional escolhido para Amores Perros não traduza sua dualidade. Talvez Amores Cachorros soasse estranho, mas estaria no contexto. Mas é como Amores Brutos que o filme do mexicano Alejandro González Iñárritu chega aos cinemas. Não deixa de haver brutalidade na estréia na direção desse profissional criado na TV. Mas também há amores e, principalmente, cães. Sentimentos humanos e animais se misturam numa trama emaranhada, como a dividir o mesmo valor em cena. Os personagens são levados pelo primeiro, o amor, na busca de seu destino. Não conseguem atingi-lo e seus bichos são companheiros da tragédia.Veja trailer do filmeAmores Brutos foi bem recebido no Festival de Cannes e representou o México na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. A crítica que acompanha a Mostra Internacional de São Paulo também votou como o melhor título da última edição. O mais significativo, no entanto, é que a obra é saudada como uma renovação no cinema mexicano. Não deixa de sê-lo, já que o último suspiro de originalidade por lá parece ter sido a passagem de Luiz Buñuel. Iñárritu sabe disso e abraça as influências. Há um tom surreal nas três histórias entrelaçadas. Como interpretar a figura um tanto patética da modelo famosa que fica atrelada a uma cadeira de rodas e se mira no imenso outdoor? E seu pequeno cão preso sob o assoalho a ganir, cercado pelos ratos? A alusão não é explícita, num humor negro tão de Buñuel, porque o diretor também é tributário da facção maior de seu país, o melodrama. De novo, um tom representado no esquete da modelo (Goya Toledo), pivô da separação de um empresário (Alvaro Guerrero), que largou mulher e filhos pela jovem. É referente a cena em que ela e um galã local vão a um programa de fofocas assumir um falso romance e com isso afastar as desconfianças em relação ao verdadeiro casal. A fonte melodramática prossegue. Está no amor de um jovem pela cunhada, numa Cidade do México periférica. Ele se chama Octavio (Gael García Bernal) e, para tirar a mulher das mãos violentas do irmão, decide ganhar dinheiro em lutas clandestinas de cães. A esperança se desfaz quando seu bicho é vítima de uma gangue. O terceiro e último personagem é um ex-guerrilheiro, El Chico (Emilio Echevarria), que se tornou mendigo e matador de aluguel depois de libertado. Quer rever a filha e vaga pelas ruas com um bando de vira-latas. Até aqui, o painel segue como uma crônica de vidas numa grande cidade, não fosse o aceno logo na abertura do filme. Uma espetacular colisão de carros deixa em suspenso o fato na trama, que aos poucos vai se montando a partir de Octavio. Ao vingar seu mascote, ele sai em disparada pelas ruas e colhe em cheio a modelo que dirigia com seu cãozinho a tiracolo. O andarilho e sua matilha testemunham o acidente. Não salva os passageiros, mas o cão de luta que agoniza. Não vale a pena revelar mais. O ponto de ebulição se resume ao acidente e é resultado de uma hábil construção de roteiro, assinado por Guillermo Arriaga. Não haveria muito o que saudar, já que trabalhos similares chegam aos borbotões. Mas Iñárritu pede mais de seu espectador. Há quem veja pretensão. Fala-se em intenção política. Seria muito óbvio. A fonte do mexicano é outra. Parte de faces muito caras à cultura latino-americana, como a idéia de crime e punição difundida pela religião católica, a morte como preço a ser pago pelo desvio. Ou seja, a saga bíblica, tão bem definida na situação de um irmão que manda matar o outro. Não bastasse, são várias as pistas deixadas pelos protagonistas no caminho: a modelo que vai às compras feliz pelo primeiro jantar na casa nova com o amante; o jovem que chega ao limite da violência ao cobiçar a mulher do próximo; e, por fim, o matador castigado ao ajudar o cão agonizante. Mas essas faces são paradoxais. É resumida na visão final do guerrilheiro partindo com o companheiro que se mostrou amoral e de comportamento tão ambíguo quanto o dono. Não se pode descartar uma obra com tal fôlego pelo seu caráter mais visível. Amores Brutos se insere, sim, no tal movimento de um cinema jovem, moderno e ágil, mas até nisso parece iludir. Há mesmo um tom fora de moda nas crônicas de adultério e traição. Enfim, a confusão de identidades, ética e moral que parece tão típica dos países subdesenvolvidos. Iñárritu escolheu como cenário a Cidade do México, mas poderia ter realizado seu filme numa esquina de São Paulo ou Brasília. Chega a ser desconfortável a sensação de reconhecimento da similaridade. Talvez até por isso, críticas aqui e ali dêem conta da banalidade da proposta do diretor.
Orlando Margarido - Investnews/ Gazeta Mercantil
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