É uma condição ingrata. Mas um desafio a que poucos realizadores se dispõem. Liv Ullmann filmou um roteiro de Ingmar Bergman. Chama-se Infidelidade e tem previsão para estrear na próxima semana. Ullmann foi - e talvez ainda seja - uma das atrizes preferidas do mestre sueco. Foi também sua mulher, o que torna o projeto mais pessoal. Há um outro desafio similar chegando aos cinemas.
Depois da Chuva une igualmente, apenas num casamento profissional, o mestre e seu discípulo. Akira Kurosawa é o professor, dito imperador do cinema japonês. Takashi Koizumi, o aluno e um desses corajosos seguidores. Mais ainda que Ullmann, pois aceitou finalizar na tela uma história inacabada do mestre morto em 1998.Foram 28 anos de parceria. Koizumi foi assistente de direção desde Dodeskaden, em 1970, o projeto que resultou num fracasso de bilheteria e originou momentos difíceis para Kurosawa, inclusive levando-o a uma tentativa de suicídio. O assistente não tinha nem 30 anos então, mas pôde acompanhar a volta por cima do mestre com Dersu Uzala, a obra seguinte. Depois, é história: Kagemusha e Ran, só para citar alguns clássicos.
Logo depois da morte do cineasta, o grupo mais próximo se reuniu para eleger o nome que deveria dar forma aos roteiros póstumos do mestre. Koizumi, então, escolheu o seu.
Trata-se de um universo recorrente a Kurosawa, uma história de samurais. Mas há diferenças. Antes de épico, o tom é doce, brincalhão. "Era assim que ele queria e deixou expresso; o público deveria sair contente de uma trama bem-humorada", lembrou Koizumi quando esteve na Mostra Internacional de São Paulo, há dois anos. Mesmo assim, o cineasta deu sua interpretação para a mensagem do imperador. Acredita que também foi um projeto seu, afinal, Kurosawa não fechou a trama por completo.
Começa numa estalagem. Viajantes ficam isolados pela chuva, entre eles, o ronin Ihei (Akira Terao), um samurai sem mestre e depauperado, e sua esposa (Yoshiko Miyazaki). Quando sai atrás de ajuda, descobre um feudo, luta por comida e é contratado pelo lorde local (Shiro Mifune, filho de Toshiro Mifune). Pelo talento e pela quebra do código de ética dos samurais, Ihei cria inveja e atrai a ira dos pares veteranos.
É um foco intimista, a levar em conta os ambiciosos painéis históricos que Kurosawa realizou sobre a mesma figura. Mas o cineasta não perde a visão coletiva da tragédia de seu personagem. Depois da Chuva também é um amargo reconhecimento da mudança dos tempos, mais precisamente, de uma era milenar nobre, quando reinavam os samurais, para outra, empobrecida e decadente. Ihei sente a passagem nos valores de conduta. Não poderia questioná-los, mas também não se conforma com a miséria a que seu clã foi relegado. Tem que caminhar no fio da espada para sobreviver.
Vale relembrar que, se dramática, a trama prefere o humor para sintetizar a dor do personagem. Koizumi acha que esta é uma característica dos tempos finais de Kurosawa. Basta lembrar seu filme-testamento, Madadayo, "ainda não" em japonês, uma negação para a chegada da morte. Na reunião de velhos amigos, otimismo e nostalgia, antes que a amargura. Em outras histórias deixadas pelo mestre, a mesma toada. O cineasta-discípulo já foi saudado como o herdeiro definitivo. Fez uma obra e um tributo rigoroso ao imperador, mas talvez ainda seja cedo para lhe conferir tal estatura. Depois da Chuva, isso sim, é a descoberta de um talento que ficou por muito à sombra de seu tutor.