"Truffaut é homem de negócios de manhã e poeta à tarde". É famosa a frase de Jean-Luc Godard, disparada quando ele e François Truffaut trocavam farpas depois de longa amizade nos Cahiers du Cinéma. Com ela, um mestre inseria outro na categoria dos cineastas burgueses. Godard era irônico duplamente. Aproveitava a face um tanto empresarial do colega, de diretor-produtor preocupado em estabelecer com grande antecipação o cronograma de seus projetos. Mas, principalmente, a distância na temática do engajamento de esquerda que Godard tanto prezava. Truffaut desmentia. Ou melhor, fazia que não era com ele. Talvez porque o calo lhe doesse. Ao menos, aquele que criou com a saga de Antoine Doinel, seu alter ego. Difícil desmentir a idéia com Domicílio Conjugal, o quarto filme do painel que chega hoje às telas.Deveria ser o último, o final de Doinel em 1970. Mas Truffaut ainda faria O Amor em Fuga oito anos depois, este sim a conclusão da vida cinematográfica do personagem. O que aconteceu antes de Domicílio Conjugal pode ser visto nos três filmes precedentes - incluindo o curta Antoine e Colette - em exibição em São Paulo. Não é preciso vê-los para apreciar este. Mas ajuda conhecer os passos anteriores e desordenados do personagem para entender o desdobramento de sua vida agora responsável, casado, pai e bem empregado. Ou, ao menos, a tentativa de que assim seja.
Daí a ironia de Godard. Truffaut imaginou que o destino do garoto rebelde e levado a uma instituição para delinqüentes em Os Incompreendidos e do jovem traumatizado pelo serviço militar que não o quis em Beijos Proibidos não seria outro que a cômoda vida burguesa. Como as experiências levadas por Jean-Pierre Léaud são as mesmas do cineasta, Truffaut então estaria buscando o mesmo caminho. Ainda que lógico, o pensamento vem mais da birra de Godard.
Foi Henri Langlois, o venerado fundador da Cinemateca Francesa, que estimulou a seqüência do painel ao comentar com Truffaut a curiosidade em ver Doinel como homem do lar. Os biógrafos Antoine de Bacque e Serge Toubiana lembram a passagem. O diretor sabia, no entanto, que o personagem não poderia seguir um padrão ajustado às regras sociais. Muito menos poderia participar da intensa realidade política pós-maio de 68. Deveria representá-lo como um tipo à margem, mas com forte empenho em se adaptar. Nada mais representativo desse objetivo que o trabalho inusitado como controlador do tráfego de maquetes de navios, depois de várias tentativas frustradas de colorir flores.
E é como parte da adaptação ao mundo burguês que Doinel é lançado à tentação do adultério. Agora casado com a violinista Christine (Claude Jade), a quem fazia juras em Beijos Proibidos, e pai de Alphonse, ele se encanta com a sedução oriental de uma jovem japonesa e cumpre a última etapa do homem realizado. Mas Doinel, sabe-se, é um atrapalhado e um descuido põe a perder seu casamento. Vai tentar de toda forma recuperá-lo. Mas nesse ponto o espectador já sabe que o homem Doinel, na visão social, ainda não existe. Inseguro, visita bordéis, como quando solteiro.
Domicílio Conjugal não se fecha nas quatro paredes apontadas pelo título. Pelo contrário. Também é motivo para Truffaut explorar o aspecto de crônica que tanto lhe deliciava. E nas ruas de Paris ou no pátio do edifício surgem personagens secundários mas definidores de um período, como o velho saudoso do marechal Pétain ou o estranho apelidado "estrangulador", que logo depois aparece na TV como imitador. O ator é Claude Vega, pseudônimo para o amigo de infância de Truffaut que se tornou comediante.
As lembranças são a chave também para citações do cinema predileto de Truffaut, de Renoir a Alain Resnais e seu Ano Passado em Marienbad. É o momento em que o cineasta homenageia seus realizadores de resistência e lembra a "política de autor", expressão inventada por ele para celebrar nomes que moldavam a verdadeira arte.
Se na estrutura de suas produções Truffaut parecia se aburguesar, como atacou o colega, na obra continuava pessoal e defensor do comando total do realizador. Talvez Godard falasse mais do personagem do que do autor.