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Código Desconhecido discute a xenofobia em Paris
Numa das cenas do filme Código Desconhecido, o fotógrafo conhecido apenas por Georges acaba de retornar da cobertura da guerra no Kosovo e almoça com a namorada, a jovem atriz Anne, e dois casais amigos. Um deles lhe pergunta como está sendo sua volta a Paris, depois da guerra. O rapaz alega dificuldade e diz que no campo de batalha foi mais fácil se acostumar com a rotina daquele ritual de massacres do que com a da capital francesa. A comparação não chega e ser uma brincadeira irônica do diretor austríaco Michael Haneke. Está inserida num contexto que, quando dita, mais assusta do que faz rir. E nada parece à toa para o mesmo diretor que arrancou elogios e repulsa com o inquietante Violência Gratuita (Funny Games) e ganhou o Prêmio do Júri em Cannes este ano, por A Pianista.Veja trailer do filme
Naquele que talvez seja um dos retratos mais realistas de uma grande metrópole de fim de século, Hanneke costura em seu novo filme uma série de histórias em forma de crônicas para demolir o mito da liberdade, igualdade e fraternidade difundido pela Revolução Francesa de 1789. Quem gostou ou odiou Violência Gratuita não deve esperar algo parecido em Código Desconhecido - que entra em cartaz. O primeiro conta a história de dois jovens que torturam física e psicologicamente um casal com um filho num abastado bairro de veraneio. A violência que marcou seu filme anterior reaparece sim, mas de uma outra forma na nova produção, só que longe de ser gratuita. Ela se apresenta de forma mais palpável e menos psicológica nas ruas de Paris, numa conturbada cidade que aparenta viver às vésperas de uma explosão de ira, marcada pelo racismo contra os imigrantes africanos e do Leste Europeu que procuram a capital francesa em busca de oportunidade de trabalho e de viver decentemente, apoiados, mesmo que de modo inconsciente, no tripé democrático pregado pela revolução.Haneke encontrou um meio simples e eficaz para introduzir o espectador no universo de seus personagens. O filme começa de forma enigmática, numa escola para surdos-mudos. Uma garotinha simula que está apavorada e encurralada numa parede e espera que seus colegas adivinhem que situação ela está vivendo. Nenhum acerta. Um corte brusco, seguido de um vazio negro de alguns segundos, leva o espectador para uma cena aparentemente banal: um adolescente branco, Jean, que acaba de sair de casa por causa de atritos com o pai, termina de comer o pão e atira o papel amassado no colo de uma mendiga de Kosovo chamada Maria. Um negro, o professor de música para crianças surdas-mudas Amaduou, filho de imigrantes africanos, exige que o rapaz peça desculpas à mulher. Os dois entram em luta corporal e toda a incriminação do fato se volta contra o negro. A partir daí, monta um quebra-cabeça que, de alguma forma, une todos os envolvidos no incidente. O fio condutor da história - escrita pelo próprio Haneke - é a atriz Anne, interpretada por Juliette Binoche, num desempenho brilhante. Sua vida se divide entre a estréia no cinema e o namoro com Georges, que quase nunca está em casa. O fotógrafo é irmão de Jean. O pai dos dois é um solitário e depressivo fazendeiro que luta para despertar o interesse do filho mais novo pelo negócio. Enquanto Anne leva uma vida de típica francesa de classe média, o inferno de Paris recai sobre os imigrantes nas mais diversas formas de discriminação e intolerância. Isso se torna mais palpável ao adentrar na vida da mendiga - que acaba deportada e tenta voltar ao país - e de Amadou, que não se conforma em ser tratado com diferença e desconfia de todos à sua volta. Todos esses mundos são tratados a partir da violência do cotidiano. Desta vez, porém, Haneke quer chocar de outra forma. Chega a assustar, no começo, quando desfila uma seqüência de fotos chocantes de cadáveres das vítimas da guerra do Kosovo. Nada do que é vivido pelos personagens em Paris, porém, parece forçado. Tudo soa rotineiro, real, próximo dos moradores das grandes cidades, até mesmo dos centros mais desenvolvidos. Nesse aspecto, sobressaem as marcas de Haneke, que constrói um filme autoral, envolvente pelo modo como foi montado e contado. Numa cena banal ele não precisou usar armamento pesado para construir uma das cenas mais impressionantes do cinema em muitos anos. Assediada por um jovem mestiço no metrô, a personagem de Juliette Binoche tenta ignorar seu agressor e muda de lugar. A atitude, interpretada como superioridade racista, irrita ainda mais o jovem, que dispara, à queima-roupa, um escarro em seu rosto. Ajudada por um senhor que não lhe dirige a palavra, a personagem se livra do agressor e segue em silêncio por alguns instantes até explodir numa crise de choro. Além da narrativa embriagante, marcada por cortes bruscos, Haneke faz cinema com personagens bem construídos e direção madura, apesar de sua carreira tardia em cinema - começou em 1989, aos 47 anos. Tudo isso fechado de modo irretocável: suas crônicas urbanas, felizmente, não têm o final conclusivo comum dos filmes - moralistas ou não. Seus personagens apenas seguem a vida, porque há ainda muito para ser vivido, mesmo num mundo cada vez mais indigesto. Talvez, por isso, a forma de contar tenha sido mal digerida pelos que julgaram o Oscar deste ano. Seu filme é um soco no estômago. Pode provocar cólicas em excesso.
Gonçalo Júnior - Investnews/ Gazeta Mercantil
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