Veja trailer do filmeMesmo aos adeptos dessa corrente será difícil ficar indiferente ao que Laís Bodanzky e seu parceiro e marido Luiz Bolognesi, ela como diretora e ele roteirista, lançam oficialmente hoje às telas. É a estréia comercial de Bicho de Sete Cabeças, consagração do último biênio em mostras e festivais nacionais, a lembrar Recife e Brasília. Nem é preciso traçar a evolução de sucesso do filme.
Troféus e aplausos são importantes, mas também podem contemplar obras mornas, a depender do humor do júri. Ao “Bicho”, cabem distinções mais rigorosas. É cinema feito na unha. Laís, herdeira do diretor Jorge Bodanzky na tradição do cinema, é a síntese e a justificativa que resulta no drama mais impactante da recente produção brasileira. Começou quando ela se envolveu na pesquisa de um documentário — Loucura e Cidadania, já concluído - e foi conhecer o horror de um manicômio em Santos. Laís acabou por se afastar da produção do filme, mas as cenas que viu foram definidoras. “Eu decidi que queria realizar uma obra sobre o tema e comecei a pesquisar e ler obras referenciais”, diz, ao relembrar suas fontes para o “Bicho”, em conversa com este jornal.
Cita um documentário que lhe tocou muito, O Profeta das Cores, de Leopoldo Nunes, sobre um morador de rua do interior paulista encarcerado por desacatar um juiz. “Há cenas que transportei para o meu filme; foi uma cópia mesmo, eu queria reproduzir o impacto que tive.” Mas todos sabem qual é a maior fonte para Bicho de Sete Cabeças. Desde que o filme começou a circular, uma figura alta e loira, de longos cabelos encaracolados, fala decidida e gestos abruptos está sempre ao lado dos realizadores e do elenco. Austregésilo Carrano é razão e fim que explica muito da força da fita.
Nos anos 70, o jovem curitibano foi internado pelo pai num manicômio quando este descobriu um filho viciado em drogas. Os poucos anos de internação foram arrasadores para a personalidade de Carrano, vítima de eletrochoques e doses maciças de medicamentos. É o que acontece a Neto, em grande interpretação de Rodrigo Santoro, filho da classe média.
Como todo pós-adolescente, curte sua rebeldia, expressa na maconha, nos grafites e nas primeiras experiências sexuais. Mas o pai (Othon Bastos) lhe marca o futuro com a internação irresponsável. A mãe (Cássia Kiss), frágil, assiste a tudo calada. No manicômio, convive com os estereótipos da loucura para a sociedade, quando Linneu Dias e Gero Camilo assombram com suas interpretações. Hoje, aos 43 anos, Carrano considera sua vida destruída. É um dos ativistas do Movimento de Luta Antimanicomial. O grupo venceu a primeira etapa de seu intento com a recente aprovação de uma lei que aponta novas direções para o tratamento mental. Ele também sobrevive com peças de teatro e livros. Numa dessas publicações, Canto dos Malditos, contou sua tragédia.
O casal das mesmas iniciais LB sempre faz questão de ressaltar que o livro não é a única base do filme. Na literatura, há mesmo referências que desconhecem, como o cultuado Armadilha para Lamartine, de Carlos Sussekind, um dramático embate entre pai neurótico e filho vitimado. Mas há aquelas que assumem, caso de Carta ao Pai, de Kafka, projetado no emocionante final. No cinema, é óbvia a relação com Um Estranho no Ninho, mas não com Vida em Família, clássico de Ken Loach sobre a tese da antipsiquiatria, filme a que Laís e Luis dizem nunca ter assistido. Ouviram muito, no entanto, Arnaldo Antunes, Geraldo Azevedo e o mestre Lupicínio Rodrigues, este presente com trechos de “Judiaria” nas palavras finais do filho.
Idéias e referências são importantes, mas “Bicho” pouco se agüentaria em pé não fosse o credo de seus realizadores. Há uma onda de nostalgia que invade o espectador ao final da projeção, de um tempo em que se acreditava ser possível mudar as coisas, o “establishment”, para usar uma expressão engajada. Laís e Luís são desse tempo, ao menos como meta de vida. São jovens, na faixa dos 30 anos, mas apostam em mudanças. Paulistas, fizeram um filme com a cara de São Paulo, embora neguem. Ela começou no palco de Antunes Filho, antes de seguir com o pai numa expedição para a Antártida, seu primeiro encontro com o cinema.
Ele já trabalhou como jornalista e chegou a dar aulas para uma comunidade de pescadores na Bahia. Realizaram juntos o ótimo documentário Cine Mambembe, a viagem pelo interior do país com exibições de filmes em praças públicas. São adeptos do encontro com aquele famoso Brasil desconhecido e bem longe do utópico. “Bicho” é a consagração dessa tese autoral. Tem uma proposta a incomodar o espectador e isso ainda é raro na retomada da produção nacional.
Os inimigos alegam que é um filme anacrônico, fora de seu tempo, exagerado na visão do horror do sistema psiquiátrico. Pais não agiriam mais assim hoje, dizem. Laís ri e conta que recentemente foi debater o filme em Campinas. Após a sessão, uma mãe se aproximou e disse à diretora que estava para internar a filha, usuária de drogas, mas tinha desistido. Não imaginava tal inferno. A obra expõe sua força. Pode ser vista também como um libelo. Mas, antes de tudo, é um painel de confrontos humanos, de intolerância e ignorância. Vê-lo apenas por um aspecto é limitar-se. Não ver nada disso é destino pior.