Veja trailer do filmeNão economizou no combustível para botar fogo na discussão no tratamento da mídia aos negros. A Hora do Show, que estréia no Brasil, é uma obra como há muito não se via em sua cinematografia — e mesmo no cinema de tese. Começa com uma reunião numa emissora de TV americana. O chefe (Michael Rapaport) esculhamba todos pela baixa audiência. Quer algo novo de seus roteiristas. Quem lhe dá o segredo do sucesso é o único negro da equipe, Pierre Delacroix (Damon Wayans).
A idéia brota das ruas: o artista amador que dança sapateado diariamente à porta da empresa. Manray (Savion Glover) é um prodígio levado por um amigo (Tommy Davidson). Pierre quer transformá-los nas velhas duplas cômicas da TV ao vivo. Mas há problemas. O roteirista acredita que ao recriar uma fórmula caída em desgraça por seu absurdo racista estará mexendo com a acomodação da platéia, enfim, jogando com velhos preconceitos para acirrar discussões.
A questão é como escolheu fazer isso. Sua dupla de cômicos é negra, mas não o bastante. Apresentam-se com uma tinta preta na cara. Com um figurino que remete a personagens miseráveis e ignorantes, o par repete estereótipos da trajetória de sua etnia na América. Não dá outra. O programa é um sucesso, faz polêmica e leva seu criador a ser alvo tanto da fama como de um grupo de rap, que o elege como um demônio a ser eliminado.
A essa altura, Spike Lee já lançou seu petardo. A visão desse universo que ele extrai sem moldar um julgamento deixa o espectador um tanto perdido. Lee deixa a impressão que navega no mesmo barco. Evidente que faz um jogo ambíguo. De uma certa forma, ele é Pierre, a querer desmontar os conceitos do espectador, seja ao acreditar numa mudança de tratamento da mídia, seja para não deixar que os erros desta caiam no esquecimento. Mas, como Pierre, Spike Lee também se arrisca. Mexe num vespeiro ao desmistificar a união e força do ativismo racial. Sugere que há divisões no círculo da etnia.
Para muitos críticos, Lee incorreu no erro de seu protagonista. Exagerou. Foi vulgar, enfim. É quando entra em cena a face documental do projeto. Numa sucessão de imagens surpreendentes, desenhos e filmes clássicos de todas as eras demonstram como eram habituais piadas e alusões depreciativas. A Hora do Show chega no momento em que o Brasil dá sua contribuição ao debate com o belo livro (base para um documentário) do diretor e pesquisador Joel Zito Araújo, A Negação do Brasil — O Negro na Telenovela Brasileira.
Lee pinta o rosto de seus protagonistas para acirrar sua tese. Araújo não precisou lançar mão de tal artifício. Ele já existia quando o ator Sérgio Cardoso apareceu com a máscara negra para representar A Cabana do Pai Tomás, na extinta TV Tupi. O resto é história e perdura ainda hoje. É fácil entender que a mensagem do diretor americano tem alcance maior e corre no tempo. Não é cinema feito para entreter.
Há cenas incômodas, radicais até, como a da polícia (branca) exterminando seus alvos (negros) numa chacina. Ninguém duvida que pode ser assim. Mas o diretor quer a confirmação aos olhos do espectador. A verdade de Spike Lee pode doer, se equivocar, mas nunca será infantil como a de Hollywood.