Uma rua. Ettore Scola não precisa mais do que isso para retratar um grande drama humano. Em seu novo filme, Concorrência Desleal, o diretor italiano utilizou como cenário uma típica via da Roma de 1938. Lá, a vida corre: garotos se divertem colocando bombinhas no trilho do bonde, jovens namoram escondido, comerciantes arrumam briga, na disputa pela clientela, meninas têm aulas de piano. Enquanto isso, o nazismo ganha espaço na Europa, Hitler se aproxima da Itália, judeus começam a ser perseguidos. Aparentemente, nada modifica o dia-a-dia daquela rua italiana.Na via Ottaviano, uma rua próxima à Basílica de São Pedro, moram os Melchiorri e os Simeoni. A primeira família veio de Milão e é católica. O patriarca é Umberto Melchiorri (interpretado por Diego Abatantuono), um elegante proprietário de uma alfaiataria, que faz roupas sob medida. Umberto é casado com Marguerita (Anita Zagaria) e tem dois filhos, Paolo (Elio Germano), um estudante de arquitetura, e o menino Pietruccio (Walter Dragonetti). Como não poderia deixar de ser, vivem com eles um irmão de Umberto - o professor Ângelo (Gérard Depardieu), que passa as tardes na alfaiataria, corrigindo provas, preparando aulas -, e um irmão de Marguerita, o tio Peppino (Augusto Fornari), um dançarino que vive atrás de trabalho. E há a empregada, Crispina (Federica Bonavolonta). Moram todos num apartamento, no andar de cima da alfaiataria, a Sartoria Melchiorri.
Lado a lado com a alfaiataria dos Melchiorri, há uma "merceria" (loja de armarinhos), que vende roupas prontas. Seu proprietário é Leone Simeoni (Sergio Castellitto). A família Simeoni, natural de Roma, é judia. Leone vive com os pais (Jean-Claude Brialy e Yvonne Ekman), a esposa Giuditta (Antonella Attili) e os filhos - a jovem Susanna (Gioia Spaziani) e o garoto Lelle (Simoni Ascani) -, além da empregada Chiaretta (Sandra Collodel). Todos no mesmo prédio dos Melchiorri.
Vizinhos de casa e de loja, Leone Simeoni e Umberto Melchiorri são rivais no comércio. A loja de Simeoni, com suas confecções prontas e ambiente mais simples e despojado, está conquistando, aos poucos, a clientela da alfaiataria de Melchiorri. Umberto, profundo conhecedor de tramas e texturas, de tecidos do mundo todo, passa noites insones tramando estratégias para driblar seu concorrente. O mesmo faz Leone. Assim, entre pequenos embustes e trapaças, os dois comerciantes, que se tratam por "alfaiatezinho" e "lojista", brigam pela mesma fatia de mercado.
Com a história dos Melchiorri e os Simeoni, Ettore Scola, herdeiro da tradição das grandes comédias italianas, já teria munição suficiente para garantir o sucesso no gênero. E ainda há outros que circulam pela via: um alemão relojoeiro que ama viver na Itália, país onde "não se leva as leis tão a sério e para tudo dá-se um jeitinho"; um professor de piano que desmaia ouvindo seus alunos tocarem e só retoma os sentidos quando lhe são servidos docinhos; além da vendedora de perfumes, que circula pela rua chamando atenção por suas belas pernas. Para completar, quem conta a história é o garoto Pietruccio, caçula dos Melchiorri, que complementa a descrição que faz de seus familiares e vizinhos, com caricaturas que desenha em seu caderno.
O que poderia ser apenas uma divertida comédia de costumes ganha outros ares quando Adolf Hitler visita Roma, que faz uma parada militar para recepcioná-lo. Só se sabe disso na via Ottaviano porque ela aparece tomada por um desfile de "camisas negras", os soldados e simpatizantes do "duce", Mussolini. A cena nos mostra como, em Concorrência Desleal, Ettore Scola continua preocupado em refletir sobre o fascismo na Itália. Ex-membro do Partido Comunista Italiano, o cineasta já tinha abordado esse tema em 1977, em um de seus filmes mais famosos, "Um Dia Muito Especial" (com Marcello Mastroianni e Sophia Loren), quando também reconstituiu a visita do líder nazista a Roma. "Existe ainda uma zona inexplorada dessa parte da história em nosso país", disse Scola à televisão italiana, quando lançou Concorrência Desleal no país, no ano passado. No filme, Scola enfoca o fascismo na Itália do ponto de vista da discriminação contra os judeus e da indiferença que tomou conta da sociedade italiana. "Queria ver o que se passava na cabeça dos italianos, daquela gente considerada normal, durante o período da perseguição contra os judeus."
Scola permaneceu na mesma rua, fixado nos habitantes comuns da classe média italiana da década de 30. Aproveitou para retratar, nos diferentes personagens, as mais diversas reações e atitudes tomadas pelos italianos com o recrudescimento do regime fascista. De um dia para outro, os italianos acordaram e leram no jornal as novas determinações trazidas com a promulgação da lei racial. Judeus começaram a perder imediatamente seus direitos de cidadãos: estudantes tiveram de ir para escolas separadas, negócios foram fechados, licenças foram cassadas e bens, confiscados. Estava iniciada a perseguição, que terminaria nos campos de concentração.
O comerciante Umberto Melchiorri é central nessa tentativa de entender o sentimento da classe média italiana. É, nas palavras do diretor, o exemplo da maioria dos italianos da época, que se professava anti-racista, mas não se dava conta dos valores presentes na propaganda fascista. Não se alinhava ao regime a ponto de delatar judeus, mas não se envolvia em discussões políticas, e se resignava. Umberto demora para compreender o terror que estava sendo praticado contra os judeus.
Vale destacar o personagem interpretado por Gérard Depardieu, o professor Ângelo. É o primeiro a se levantar, nas conversas entre amigos, contra o regime. É o típico intelectual que mantém posições contrárias ao fascismo, mas não tem coragem de partir para a ação. Em uma cena engraçada, no começo do filme, Ângelo corrige a prova de um aluno que exalta a postura do "nosso duce", em um texto bem-feito. "Dez pelo texto, zero pelo conteúdo. Portanto zero na nota final", avalia. "Não há mais crítica neste país!"
Claro que há os italianos que aderiram ao discurso fascista e assumiram a discriminação contra os judeus. É o caso da vendedora da alfaiataria de Melchiorri, católica, que passa a tratar mal os clientes judeus. E há personagens como Peppino (cunhado de Umberto Melchiorri) que, sem posicionamento ideológico definido, acaba aderindo ao fascismo em busca de emprego e poder.
Não por acaso Scola colocou a família católica Melchiorri como vizinha da judia Simeoni. As duas são comerciantes do mesmo ramo, vivem na mesma rua, mesmo prédio, têm filhos da mesma idade. "Queria mostrar como em um contexto homogêneo dois grupos familiares são surpreendidos pela lei racial", disse o cineasta.
Em quase todas as cenas externas há a presença imponente da Cúpula de São Pedro. É a crítica de Scola ao posicionamento da Igreja Católica, do Vaticano e do papa Pio XII em relação ao anti-semitismo. "Silêncio culposo" foi a expressão usada pelo cineasta.
Scola não precisou sair de sua rua e acompanhar os judeus que foram levados para campos de concentração para causar indignação. Sempre narrada pelo pequeno Pietruccio, a história chega ao espectador com a indignação do olhar infantil sobre os fatos. Amigo de Lelle, o caçula dos Simeoni, Pietruccio tenta buscar explicações para entender o que acontece com a família do colega.
Quando o argumento inicial de Concorrência Desleal chegou às mãos de Scola, levado pelo roteirista Furio Scarpelli, ele tratava da história da concorrência entre dois comerciantes judeus que atuavam no mesmo ramo, e a história se passava nos dias de hoje. Scola decidiu situar o enredo na Roma fascista. Mudou o caráter da competição. Tornou a concorrência, de fato, desleal.