Quem nunca conseguiu entender por que os espanhóis acham tanta graça nas touradas tem agora uma oportunidade de ouro e um cicerone de luxo: Orson Welles, um dos mais importantes diretores da história do cinema. A sétima edição do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade - que começou no último dia 11, no Rio, e começa nesta terça em São Paulo - homenageia o criador de Cidadão Kane (1941) e traz ao Brasil achados como o curta-metragem Madrid Bullfight.
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Trata-se de um episódio da série A Volta ao Mundo com Orson Welles (Around the World With Orson Welles), produzida em 1955 sob encomenda da rede de televisão britânica BBC. O cineasta visitou cinco lugares famosos da Europa e, em cada um, dirigiu e apresentou um documentário de 26 minutos. Além de Madrid Bullfight, no qual explica a tourada, Welles produziu Chelsea Pensioners, rodado em Londres, Pays Basque 1 e 2, na Espanha, Saint German de Près, gravado em Paris, e Third Man Returns to Vienna, sobre os cafés da capital austríaca. Este último é a única fita ausente do festival - segundo a organização, o episódio foi perdido.
A retrospectiva em homenagem a Welles traz outros sete títulos, incluindo Verdades e Mentiras de Orson Welles (1975), dirigido pelo próprio e que tem como tema um falsificador de obras de arte; e É Tudo Verdade (1993), baseado no filme homônimo e inacabado de Welles com gravações no Brasil (projeto que batizou o festival). A vinda do cineasta ao país, em 1942, foi patrocinada pelo governo dos Estados Unidos como parte da política de "boa vizinhança". "Ele esteve aqui há 60 anos mas ainda é um gigante pouco conhecido pelos brasileiros", diz o fundador e diretor do Festival, Amir Labaki, justificando a homenagem. "É preciso divulgar que o trabalho de Orson Welles vai muito além de ‘Cidadão Kane’".
Também faz parte da homenagem a exibição da trilogia produzida pelo diretor brasileiro Rogério Sganzerla a partir do cineasta: Nem Tudo é Verdade, de 1986; A Linguagem de Orson Welles, de 1991; e Tudo é Brasil, de 1997.
Este ano, o Festival Internacional de Documentários traz 93 filmes e está dividido em vários segmentos. Além da Retrospectiva Internacional (com Welles), a Retrospectiva Nacional traz trabalhos produzidos para a TV Globo entre 1971 e 1979 por cineastas importantes, como Eduardo Coutinho, João Batista de Andrade, Hermano Penna e Walter Lima Jr.
Na Competição Internacional, nomes de peso do documentarismo estarão presentes, como Frederick Wiseman, considerado o maior nome do gênero nos Estados Unidos. Wiseman, homenageado no ano passado, concorre com Violência Doméstica (2001), no qual apresenta a realidade de mulheres e crianças vítimas de abuso dentro de casa. Três produções brasileiras estão inscritas nessa categoria: Viva São João, de Andrucha Waddington (que acompanha o músico Gilberto Gil em visita a festas juninas no Nordeste); Oscar Niemeyer - O Filho das Estrelas, de Henri Raillard (sobre o arquiteto); e Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut (no qual a diretora narra sua tentativa de vencer a burocracia e obter o documento).
A Competição Brasileira traz seis longas e 14 curta-metragens, todos inéditos. Entre os primeiros, uma descoberta arqueológica: A Rocha que Voa, de Eryk Rocha, filho do cineasta Glauber Rocha. O filme tem como base três horas de entrevistas que Glauber concedeu a jornalistas cubanos, entre 1971 e 1972, época de seu exílio na ilha. "Ele fala de filosofia, do Brasil, da situação política, do AI-5, do cinema latino-americano", diz Eryk. "E fala principalmente do que ele acha que deve ser o papel do intelectual na América Latina". A entrevista foi garimpada nos arquivos do ICAIC (Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográficas), onde o diretor de 24 anos fez um curso durante dois anos e meio. "Não era possível que o Glauber tivesse morado dois anos em Cuba e não tivesse deixado nenhum registro", diz Eryk. "Sabendo do caráter dele e do sentido histórico que tinha, a gente vasculhou e descobriu no fundo do baú essas entrevistas nas quais ele fala em portunhol". A partir da voz de Glauber, Eryk fez uma montagem com filmes latinos, cenas de Havana no passado e no presente, imagens que, segundo o diretor, são sugeridas pela fala do pai. "É um filme através do pensamento do Glauber, e não sobre ele", frisa o diretor.
Na seção Programas Especiais, o Festival traz um vencedor do Oscar: o espanhol Fernando Trueba, laureado em 1993 com a estatueta de melhor filme estrangeiro por Sedução. O filme Rua 54 (Calle 54) foi produzido no inverno de 2000. Trueba reuniu no estúdio da Sony, na rua 54, em Nova York, a nata do jazz latino, uma de suas paixões. A lista inclui os cubanos Chucho Valdes e seu pai, Bebo, e ainda Paquito D’Rivera; o dominicano Michel Camilo; os norte-americanos Chico O’Farril e Jerry González; o argentino Gato Barbieri; o espanhol Chano Domínguez; a brasileira Eliane Elias; e, em uma de suas últimas apresentações, o americano Tito Puente, morto no mesmo ano. Faz frio em Nova York, mas a temperatura no estúdio é caribenha. Trueba preparou as câmeras com cuidado e reverência para com seus ídolos, e o resultado é empolgante. Em poucos segundos, a qualidade visual e sonora conduz o espectador para dentro do estúdio. E como não há platéia na gravação, o silêncio após cada música causa um estranhamento - a vontade é de levantar, assobiar e aplaudir.
A programação especial traz também documentários independentes feitos nos Estados Unidos após os atentados terroristas de 11 de setembro. Transformando a Tragédia em Guerra, filme produzido pela PTTV (uma espécie de cooperativa de diretores e produtores que veicula suas fitas em canais comunitários americanos), faz uma crítica à cobertura tendenciosa da imprensa americana após os atentados e à manipulação da opinião pública para o apoio incondicional a uma resposta militarizada. "Os atentados foram um marco também no campo das imagens", diz Labaki.
A questão da imagem como representação de guerras será discutida também em um seminário. A 2ª Conferência Internacional do Documentário Imagens de Conflito acontece nos dias 19 e 20 de abril no Cineclube DirecTV, em São Paulo. São quatro mesas-redondas sobre a manipulação das imagens pelos meios de comunicação. Entre os debatedores, estão o professor de cinema da Rochester University (EUA), Bill Nichols, e o cineasta João Moreira Salles. O segmento O Estado das Coisas, que completa o Festival, é uma mostra não-competitiva e pretende apresentar novas tendências na realização de documentários. Há produções da França, Polônia, Inglaterra, Austrália, Cuba, Espanha e Brasil - entre eles o filme Timor Lorosae - O Massacre que o Mundo Não Viu, dirigido por Lucélia Santos.