Em sua primeira sessão para a imprensa no Festival de Cannes, fora de concurso, o brasileiro Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Katia Lund, impressionou pelo trabalho dos atores - crianças e jovens recrutados em subúrbios e favelas cariocas - e por uma montagem rascante. Veja também:
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A câmera nervosa expressa o conflito refletido na tela, dolorosamente baseado em fatos reais. O enredo adaptou o livro homônimo de Paulo Lins, que resgata as biografias de inúmeros personagens nutridos no mesmo ambiente de miséria e exclusão, mergulhados no crime, sitiados pelo tráfico e por uma polícia corrupta e violenta.
Nem por isso há maniqueísmo em Cidade de Deus. Nunca se nega a nocividade do crime, nem se enaltece a figura dos bandidos. Ainda assim, o filme é capaz de fornecer, às vezes em linguagem quase didática, as explicações para o modo de agir de cada personagem, humanizando sem satanizar ou julgar.
O herói é Buscapé (Alexandre Rodrigues), irmão de um ladrão morto e que decide tomar outro rumo - decisão que, para gente como ele, sem escolaridade ou protetores da elite, é muito mais feroz.
Enquanto luta para tornar-se fotógrafo, Buscapé é o narrador das muitas vidas que fazem do subúrbio de Cidade de Deus um pedaço do inferno - os jovens traficantes Zé Pequeno (Leandro da Hora), Bené (Phelipe Haagensen), Mané Galinha (Seu Jorge) e Cenoura (Matheus Nachtergaele, um dos raros profissionais do elenco).
Algumas das cenas mais impressionantes de Cidade de Deus mostram crianças empunhando armas, sendo encorajadas a matar pelos mais velhos, num ritual de passagem que eterniza o círculo da violência e que se justifica perversamente naquele contexto, já que os donos do tráfico morrem sempre cedo, em geral antes dos 25 anos.
Chega a chocar a fala de um desses meninos: "Não sou criança, não. Fumo, cheiro, matei, roubei. Sou sujeito-homem".
Trata-se de uma síntese poderosa de uma infância roubada e um futuro impossível. Por essa contundência, Cidade de Deus fez boa companhia ao documentário americano Bowling for Columbine, de Michael Moore, que relatou o morticínio interminável de uma América obcecada pelas armas de fogo, também presente em Cannes.