Parece difícil fugir a uma constatação feita pelo diretor Jean-Luc Godard em Elogio ao Amor segundo a qual o gênero documentário, em cinema, não tem razão de ser. Ainda que jamais falsifique as imagens documentais, um cineasta colocará nelas todo o peso de um leitor, toda a perplexidade e a apreensão criativas, e construirá, a partir de uma sucessão de fragmentos, o universo que lhe convier. Ao ordenar as imagens de um modo particular, terá empreendido, então, não propriamente uma aventura factual, mas a expressão de verdades que lhe dizem respeito como artista. O termo "documento" pode ceder facilmente, aqui, ao termo "visão". Boas ou más, são as visões de um cineasta sobre uma situação o que se vê em uma obra do gênero, não o mundo-documento, o mundo-prova a que tantos recorrem com expectativa quando procuram filmes não-ficcionais.
Isto é facilmente perceptível em ABC África, filme do diretor iraniano Abbas Kiarostami sobre o abandono humano em Uganda, África. Ao procurarmos a África neste filme (cujo título cita o "A, B, C... Manhattan" de Amir Naderi), nós a veremos, claro, mas, principalmente, assistiremos a Kiarostami raciocinar sobre o continente, a fundi-lo em indignação poética. É preciso confiar em Kiarostami para acreditar que a África que ele vê é real e duramente sentida, a África sobre a qual os números falariam melhor, mas sobre a qual a força de suas imagens poderá tornar repentinamente completa.
Este foi o primeiro filme do autor de Gosto de Cereja realizado fora do Irã. Kiarostami esteve em Uganda a convite da Organização das Nações Unidas (ONU) para registrar o trabalho da entidade Uweso (Uganda Women’s Effort to Save Orphans), que tenta, por meio da educação e profissionalização das mulheres, salvar os órfãos do país. Em 2000, quando o filme foi realizado, eles eram 1,6 milhão num universo de 22 milhões de habitantes. Dois milhões de homens e mulheres havia morrido naquele ano com o vírus da Aids e outra quantidade semelhante era soropositiva à doença.
Os quase dois milhões de meninos e meninas órfãos ugandenses foram filhos de vítimas fatais da Aids e da malária (as duas causas de morte são populares no país a ponto de, em diversos momentos, a população se distrair das razões de um passamento) e para eles não houve remédio ou interesse oficial. Trinta por cento dos habitantes do país se viram direta ou indiretamente vítimas das doenças naquele ano. Era freqüente que mães de 70 anos tivessem perdido seus onze filhos (ou seis de seus onze) para a Aids, que trouxe ainda, aos habitantes do país, a pecha de promiscuidade do doente e não do poder público.
Kiarostami está perplexo e, com duas câmeras digitais, registra demoradamente, de acordo com um estilo que se pode denominar corajoso, os garotos ugandenses num chão barrento de chuva. O filme começa por mostrar que ali, nos casebres, vivem as famílias, ou, melhor dizendo, os conglomerados cuja filiação e ligações de parentensco já não importam, pois o que importa é que, de alguma forma, sobrevivam. Nas feiras livres, corta-se o gado magro por inteiro diante dos consumidores, como no Nordeste do Brasil, e o quadro da ausência de higiene e da indignidade se constrói de maneira firme aos olhos do diretor do Irã.
É ali que surpreendentemente, para ele, dançam, pulam e cantam as crianças, todas bonitas, todas imponentes, mesmo quando ele esperava, delas, algum gesto de dor. (Kiarostami parece ser o último diretor a acreditar na inocência infantil, contra Hollywood, que, por objetivo mercadológico, crê em sua rápida capacidade de consumir.) O diretor iraniano não ousa lhes fazer perguntas e as filma como são, em toda energia e interesse. Mas é só aparecer o primeiro adulto ugandense sorridente à câmera para que ele o bombardeie com a angustiante questão: "Por que você é feliz?" Ao que o entrevistado, talvez ébrio, terço na mão, responde depois de histriônica hesitação: "Sou feliz porque Deus me ama."
Haverá algum amor de Deus na terra esquecida? - pergunta Kiarostami. Ele não crê nesse Deus. Mais tarde, mostrará o mesmo homem "feliz" abanando uma cédula de dinheiro. A ligação com a divindade virá na porta de um dito centro de tratamento para doentes com Aids, coberto por cartazes que garantem a impenetrabilidade do vírus a quem mantiver a virginidade sexual - e só assim. O hospital é apresentado logo depois do desfile de uma fábrica de caixões, e ainda estamos sobre estes quando o anfitrião do centro diz aos membros da equipe cinematográfica tratar-se do "melhor centro de tratamento de Aids em Uganda".
Para Kiarostami, há uma conclusão fácil e rápida: a Igreja, ao proibir o uso de preservativos, mata os fiéis que diz proteger. As imagens dos santos católicos emolduram a pobreza nas paredes. É forte e livre a associação religiosa que ele faz por todo o filme. Uma enfermeira ri demoradamente no hospital, junto ao anfitrião, minutos antes de uma criança falecer com Aids, e de ela embalá-la como um pacote que, por pouco, não cairá da garupa da bicicleta de um parente seu.
Os adultos de Kiarostami, por razões que ele crê óbvias, não devem sorrir, a menos que, numa maravilhosa cena de aula, uma professora conte de um a cinco para as crianças, em inglês, ou que, num ritual bastante comum, as mulheres muito bonitas e bem vestidas se regozijem em gritos e canções com a poupança trabalhada de 50 mil schillings.
Em todo o filme, por mais que Kiarostami a procure, não existe uma única cena de desespero entre os habitantes, nenhum choro dilacerado depois de uma má notícia, com a exceção daquele lamentar ininterrupto que parte de uma criança no hospital. São seres resignados à sorte, especialmente as mulheres, porque praticamente só elas restaram entre os habitantes, já que a mortandade pela Aids atingiu os homens no melhor momento de sua vida produtiva, entre 15 e 45 anos de idade.
Este é um filme tocante e necessário, feito com forças que se chocam entre a factualidade, a emoção e o partidarismo, isto sem mencionar a beleza de certas imagens, como aquela de um raio que atravessa longo (e corajoso, mais uma vez) período de tela escura. Kiarostami pode compreender tudo, explicar tudo, mas um ponto ele não esclarece, que é a razão da felicidade do habitante naquela miséria onde nem mesmo luz, à noite, há. ("Nunca o sol foi tão necessário a um país", ele diz, depois de constatar que o governo tira a energia elétrica dos habitantes a partir da meia-noite e, por conseqüência, nega-lhes vida por seis horas). É este sol o incompreensível a Kiarostami, um sol que se faz da solidariedade entre os habitantes do país, a alegria de ajudar sem mesmo poder, a distribuição fraterna que fazem do mínimo que têm. É por esta razão que são alegres os ugandenses, porque, sofridos, ainda se podem dizer úteis.