O empresário Oceano Vieira de Melo jura que nunca freqüentou o banco de uma escola. Mesmo assim, sabe ler e a escrever, fala fluentemente quatro idiomas - inglês, francês, italiano e espanhol - e se tornou jornalista e editor. Tudo por causa de uma paixão sem limites que desenvolveu pelo cinema. Ele chegou a assistir a oito edições seguidas do Festival de Cannes e muitas outras de Berlim, Veneza e outros dos maiores eventos de cinema do mundo. Nascido em Carneiros, a 270 quilômetros de Maceió, Alagoas, há 51 anos, Melo conta que aprendeu a ler nas páginas da Gazeta de Alagoas - da família do ex-presidente Fernando Collor -, O Cruzeiro e Manchete porque queria compreender as legendas dos filmes.Melo teve uma infância bem parecida com a de milhares de meninos de todo o mundo apaixonados por cinema, como o garoto retratado no filme Cinema Paradiso (1989), do diretor italiano Giuseppe Tornatore. Sem dinheiro para pagar a entrada, ele acertou com seu Quindinho, dono do Alvorada, único cinema da cidade, que venderia balas antes das sessões. Naquela época, a sala exibia um filme diferente por dia. A exceção acontecia quando apareciam os épicos bíblicos que ocupavam os horários do sábado e do domingo. Aos poucos, os dois se tornaram amigos e Melo passou a acompanhar o exibidor nas longas viagens semanais de caminhonete até Maceió, onde alugavam as fitas. Depois, virou operador dos projetores. O garoto que brincava de projetar celulóide na parede de casa com uma lanterna cresceu e a sobrevivência o afastou do Alvorada. Mas não do cinema.
Em 1983, quando era vendedor de eletroeletrônicos das lojas Sears, Oceano Melo acompanhou maravilhado a chegada do videocassete ao Brasil. Criou, então, o Jornal do Vídeo, uma publicação sem venda em banca, dirigida somente às distribuidoras e videolocadoras. Foi um sucesso imediato que ele atribui ao conhecimento sobre filmes que procurava imprimir na escolha das pautas e confecção das matérias. Dezoito anos depois, o jornal virou revista. Há dois anos, Melo lançou dois novos títulos - DVD Videobusiness e DVD Screen - e se prepara para colocar nas bancas a partir do dia 1º de junho uma coleção de 45 títulos de grandes diretores do cinema mundial. O primeiro será Ontem, Hoje e Amanhã (Ieri, Oggi, Domani, 1963), do diretor Vittorio De Sica, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni.
A revista, porém, é apenas uma pequena parte de um negócio iniciado há dois anos que promete encantar os cinéfilos que curtem os grandes diretores de todos os tempos, principalmente aqueles do velho continente. Melo criou a Distribuidora Versátil em 1999 e já lançou exatos 70 títulos em DVD - alguns em VHS - entre filmes brasileiros e de novos e consagrados mestres europeus, além de concertos e shows de jazz, documentários e infantis. Entre outros, destacam-se a filmografia completa de Arnaldo Jabor, a trilogia de Krzysztof Kieslowski, Orfeu Negro, de Marcel Camus, vencedor do Oscar de filme estrangeiro e Palma de Ouro de Cannes em 1959. Lançou também Aviso aos Navegantes (1951), de Watson Macedo, a primeira chanchada da Atlântida reproduzida para o formato de DVD.
Esta semana, Oceano Melo inicia o projeto mais ambicioso de sua empresa: a coleção do diretor italiano Federico Fellini, que tem cinco títulos programados até o final do ano: A Doce Vida, A Estrada, Ginger e Fred e Ensaio de Orquestra. A série começa com Noites de Cabíria, que deu ao diretor o Oscar de Filme Estrangeiro em 1957. E tem muito mais. A Versátil inicia junto com Fellini outras quatro coleções. A Série Mestres do Cinema Mundial já tem definidos os filmes Antes da Revolução, de Bernardo Bertolucci; A Noite e Identificação de uma Mulher, de Michelangelo Antonioni; Z, de Costa-Gavras; A Balada de Narayama, de Shohei Imamura; O Boulevard do Crime, de Marcel Carné; Crônica do Amor Louco, de Marco Ferreri; Negócios à Parte, de Claude Chabrol; Belíssima e Rocco e seus Irmãos, de Luchino Visconti; e A Fonte da Donzela, de Ingmar Bergman.
A Coleção Irmãos Taviani trará Pai Patrão, A Noite de São Lourenço, Noites com Sol, Bom Dia, Babilônia, Afinidades Eletivas, San Michel e Aconteceu na Primavera. A Série Novos Realizadores terá diretores de toda a Europa e do Irã. Os primeiros programados são A Camareira do Titanic, de Bigas Luna, Lucie Aubrac, de Claude Berri; Tempo Redescoberto, de Raoul Ruiz; Place Vendôme, de Nicole Garcia; Aprile, de Nanni Moretti; Os Canastrões, de Patrice Leconte; Gabbeh, de Mohsen Makhmalbaf; O Balão Branco, de Jafar Panahi; Violência Gratuita, de Michael Haneke; e Alice & Martin, de André Téchiné. Três títulos dessa coleção estão indo para as lojas este mês: Maus Hábitos, de Pedro Almodóvar; O Doce Amanhã, de Atom Egoyan; Kolya - Uma Lição de Amor, de Jan Sverák.
O cinema nacional terá espaço na Série Mestres do Cinema Brasileiro. O título de estréia sai esta semana, com a "edição definitiva" de Um Copo de Cólera, de Aluizio Abranches. Os próximos serão Ópera do Malandro, de Ruy Guerra; Outras Histórias, de Pedro Bial; e Até que a Vida nos Separe, de José Zaragoza.
A decisão da Versátil de produzir apenas DVD a partir deste ano está relacionada às rápidas mudanças pelas quais o mercado vem passando nos dois últimos anos. A venda de aparelhos de DVD cresceu 300% no ano passado e a previsão para este ano fica entre 150% e 250%. O acúmulo de aparelhos comercializados passa de 1,1 milhão em 18 meses, desde que começaram a ser fabricados no Brasil, em 1999, enquanto o videocassete levou 4,5 anos para alcançar esta marca. Hoje, a venda direta ao consumidor de VHS é de apenas 10% e se sustenta principalmente graças aos filmes infantis. Só interessa às distribuidoras a venda para locação, dirigida a pessoa jurídica (videolocadora), que paga entre R$ 80 e R$ 90 por cópia. O DVD, por outro lado, traz uma série de apelos que têm estimulado o hábito da compra direta e de coleções, por causa do espaço menor que ocupa e da possibilidade ilimitada de informações adicionais.
A edição de colecionador de Noites de Cabíria é um exemplo disso. O DVD traz a versão restaurada e com cenas inéditas do filme, mais um disco extra com o documentário Fellini, um Auto-Retrato, produzido pela RAI, da Itália, e só exibido em São Paulo na Mostra Internacional de Cinema. E ainda inclui desenhos do diretor, filmografia ilustrada, 200 fotos, homenagens, dicionário felliniano, biografias, prêmios, críticas da época e um depoimento de Giulietta Masina sobre o marido Federico Fellini. Todos esses adicionais fazem do DVD brasileiro único no mundo, já que todo o material foi pacientemente garimpado e reunido pela Versátil. Segundo Fernando Brito, diretor de promoção da empresa, este será um dos diferenciais da distribuidora, que pretende suprir o mercado de cinema de arte em DVD para colecionadores.
Oceano Melo conta com certo orgulho que foi o primeiro a anunciar no Brasil o surgimento do DVD, em 1995, quando tomou conhecimento da novidade durante uma feira de tecnologia em Los Angeles. Em seguida, criou uma coluna no "Jornal do Vídeo" chamada "DVD News", em que passou a acompanhar a chegada dos primeiros aparelhos e filmes ao mercado. Finalmente, em março de 1997, pagou US$ 700 pelo primeiro modelo americano a chegar às lojas. Na bagagem, trouxe também uma cópia do filme Batman, de Tim Burton, o primeiro filme a sair em DVD. Além de ser um produto colecionável, Melo destaca como atrativos a reconhecida superior qualidade de áudio e imagem. Ao mesmo tempo, o baixo custo e a rapidez de reprodução têm feito com que muitos filmes nunca antes lançados em VHS saiam agora em sistema digital.
A Versátil aposta principalmente na revitalização pela qual o cinema vem passando nos últimos cinco anos nas grandes cidades brasileiras. A ameaça dos canais de filmes da TV paga deixou de ser o bicho-papão contra o cinema e as locadoras não mais encaram o DVD como inimigo. Ao mesmo tempo, a chegada do formato americano das salas multiplex está levando mais pessoas aos cinemas. Brito cita como exemplo a região da avenida Paulista, em São Paulo, onde 90% dos cinemas exibem somente clássicos e filmes considerados menos comerciais. Daí o crescimento dos circuitos e distribuidoras Unibanco, Estação Botafogo, Pandora e Mostra Internacional de São Paulo.
A distribuição continua a ser o principal desafio da empresa de Oceano Melo. Ele conta uma série de episódios em que tentou oferecer DVDs para grandes redes de magazines e supermercados, mas encontrou resistência porque as pessoas responsáveis pelas compras não conhecem os filmes e seu potencial entre o público cinéfilo. "Fico triste quando um desses gerentes me pergunta o que é ‘Cinema Paradiso’." Até mesmo nas grandes livrarias ele tem enfrentado desinteresse por seus títulos. Pedem duas ou três cópias e quando acabam não repetem o pedido. "Não entendo por que muitas redes de lojas não têm pessoas preparadas para fazer as compras e tratam filmes como se fossem batata ou detergente."
Mesmo assim, o empresário garante que tem fôlego para apostar no DVD. "Não concorro com ninguém, meu público é mais intelectual, são pessoas que têm um sentimento diferente em relação ao cinema." Ele ressalta que seu público é elitizado. "Não se trata, claro, de elite financeira, mas intelectual, que está em todas as classes sociais, são pessoas que amam cinema."