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Marco Bellocchio critica pragmatismo da fé oficial no Rio BR

Terça, 01 de outubro de 2002, 07h48

O novo filme do italiano Marco Bellocchio, um dos destaques do Festival Rio BR 2002, inicia o seu fortíssimo A Hora da Religião, atração de segunda-feira, com uma seqüência em que mostra o roubo da inocência da infância.

O menino Leonardo (Alberto Mondini) gesticula agitado, parecendo defender-se do ataque de um fantasma que o persegue. Quando sua mãe (a atriz argentina Jacqueline Lustig) o interroga sobre o motivo, ele se mostra intimidado pela onipresença de Deus. Se Deus está em toda parte, diz, então nunca se pode estar só. O mais claro equivalente da paranóia.

Com esse ponto de partida, pode-se imaginar a estrada trilhada por Bellocchio para apresentar os dilemas de um pintor, Ernesto Picciafuoco (Sergio Castellitto), em torno do processo de canonização de sua mãe.

E isso não só porque Ernesto é ateu. Seu personagem é um verdadeiro herói ético, moral, que resiste a ser cooptado pelo pragmatismo da fé oficial - como o pregado por uma de suas tias, que lhe roga para converter-se ao catolicismo porque, afinal, "não custa nada" e ainda pode servir para alguma coisa, caso exista mesmo uma outra vida.

Ernesto enfrenta um cerco implacável, movido por seus irmãos, parentes, conhecidos (um dos quais afirma mesmo ter se recuperado de uma doença incurável depois de ter rezado para sua mãe) e especialmente padres e bispos, que pretendem que ele deponha no processo de beatificação.

Mas Ernesto resiste a tudo, a ser cínico inclusive. Insiste em falar a verdade, especialmente a seu filho Leonardo. Fora da cultura e da racionalidade, Bellocchio não enxerga solução.

Não admira que esta verdadeira alegoria política tenha suscitado polêmica com a Congregação de Bispos na Itália, onde o filme foi lançado comercialmente em abril.

Um filme necessário, mas que certamente não será visto pelos que mais precisariam assisti-lo. Circulará, com certeza, num restrito circuito de arte para espectadores que já estão convencidos da necessidade de refletir criticamente sobre temas como este.

O vigor do cinema argentino
Se a Argentina vive uma crise, com certeza não é de cineastas. Na terra de Maradona, o cinema nacional tem tomado o pulso da nação, traduzindo esse contato íntimo em filmes que tratam visceralmente dos assuntos que transtornam o país.

Um de seus mais inquietantes exemplares, Bonaerense, também exibido nesta segunda-feira, ainda registra mais um atrativo - as inquietantes semelhanças com o Brasil num processo de desagregação social, a que corresponde uma crescente violência policial.

Bonaerense, o título, é uma gíria que corresponde a duas coisas. Designa, ao mesmo tempo, o morador nativo de Buenos Aires e a temida polícia local. Temida com muita razão.

Uma delegacia é, ao mesmo tempo, a última instância a que recorre um cidadão abandonado por todas as demais instituições, uma coleção de mazelas de toda ordem, um beco sem saída de burocracia e filas sem fim e, quando se rompe a curta paciência dos fardados, fonte de autoritarismo.

Mas Trapero tem ambição maior do que denunciar um fenômeno que, aliás, está presente em muitos outros países. Seu foco é a internalização da violência, a transformação da vítima em algoz.

Para isso, vale-se de um protagonista despossuído, o chaveiro Zapa (Jorge Roman), camponês simplório e sem formação escolar que acaba envolvido num assalto - onde sua participação foi apenas abrir um cofre para seu chefe (Hugo Anganuzzi), sem saber do que realmente se tratava.

O chefe desaparece com o dinheiro roubado e Zapa só escapa da prisão porque tem um padrinho com altos contatos na esfera policial.

A mudança de ares, em todo caso, torna-se imperiosa e Zapa vai para Buenos Aires. Com uma carta de recomendação do padrinho mafioso, acaba entrando na corporação policial.

Tímido e humilde, é submetido a sucessivos rituais de humilhação que acabam solidificando nele uma segunda natureza.

O corte brutal com suas raízes e a imersão neste cotidiano opressivo alimentam uma raiva cega, que se transforma na base de um ser autoritário, um policial violento, como tantos outros, adaptando-se ao crônico atraso dos baixos salários com o recurso constante à corrupção.

O filme visita ainda outros temas que incomodam argentinos e brasileiros. Como a verdadeira guerra entre policiais e jovens desempregados nas periferias das grandes cidades e o crescimento de cultos místicos que semeiam crenças absurdas ao mesmo tempo que extraem de populações já pobres alguns de seus últimos tostões. Um outro tema oportuno e bastante raro em filmes argentinos é o do racismo.

Transformando em cinema tantas inquietações, Trapero não se esqueceu mesmo de quase nada. Seu retrato da Argentina moderna é mesmo devastador.

Reuters

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