É bem provável que o Festival Rio BR 2002 não mostrará qualquer outro filme de terror mais apavorante que Ônibus 174, documentário de José Padilha exibido nesta sexta-feira. Não há roteirista, por mais delirante que seja, capaz de imaginar uma história tão absurda, cruel, dolorosa e tragicamente humana. Mais uma vez a realidade superou de longe a ficção.
E é com uma sensação de lâmina cravada no peito que se assiste a esse filme, que reconstrói a trajetória de Sandro do Nascimento, que sequestrou o ônibus 174 em 12 de junho de 2000, paralisando o Rio de Janeiro.
Um drama que manteve o Brasil todo de respiração suspensa por várias horas, com a TV transmitindo tudo ao vivo, e que culminou com a morte de uma das reféns, Geisa Gonçalves - com tiros disparados por Sandro e pela polícia. O sequestrador também morreu sufocado na viatura policial depois de rendido.
Mais do que um filme, Ônibus 174 é um verdadeiro manual de funcionamento da questão social brasileira, em que emerge o perfil de Sandro do Nascimento - um sobrevivente da chacina dos meninos da Igreja da Candelária, também no Rio, em 1993.
Foram utilizadas imagens garimpadas em cinco horas de filmagens ao vivo por emissoras de televisão, entrevistas com familiares, amigos e parentes de Sandro, de algumas das reféns, e do viúvo da vítima, bem como de policiais que participaram da operação (um deles incógnito, de máscara, porque o batalhão a que pertence proibiu as entrevistas de seus agentes).
Desse minucioso trabalho de reportagem, surgem também detalhes desconhecidos, como o fato de que o seq estrador não era um menor abandonado. Sua mãe, Clarice, era uma pequena comerciante de São Gonçalo, assassinada diante dos olhos do menino Sandro, que tinha 9 anos de idade.
Uma cena que o traumatizou e esteve por trás de sua atitude de abandonar a família, tempos depois. A partir daí, Sandro ganhou as ruas e nunca mais encontrou um eixo. Caiu no crime, em instituições de menores, passou pela cadeia, fugiu, tentou, desistiu e finalmente abraçou o caminho da violência.
Uma qualidade do diretor é nunca psicologizar demais o relato, inserindo também aspectos como as deficiências técnicas dos policiais que participavam da negociação com o seq estrador e a interferência de autoridades que não estavam no local.
Um dos depoimentos mais impressionantes é de um "assaltante profissional" - cujo rosto é escondido por uma máscara - e que é um clone assustador do que o próprio Sandro parece ter se tornado nos últimos tempos de sua vida.
Esse assaltante, que conheceu Sandro, fala friamente do episódio do seq estro, analisando-o de seu ponto de vista de bandido assumido - dizendo que o sequestrador morto errou ao não ter, por exemplo, comprado uma granada, "que na favela é barato."
Mais arrepiante é seu comentário, também sem trair nenhuma culpa, de que, quando o assaltado não tem dinheiro, ele joga álcool e queima a vítima.
Que tipo de sociedade está gerando esses monstros? O medo que os cidadãos comuns sentem deles precisa ser enfrentado com informação genuína sobre seu processo de formação - coisa que este filme fornece com fartura e é o ponto de partida para uma reflexão sobre como evitar que tudo isso se repita.
Excluídos em Nova York
O filme Dois Perdidos Numa Noite Suja, outra atração brasileira desta sexta, leva para as telas a peça homônima de Plínio Marcos, adaptada pelo diretor José Joffily.
Bem recebido pelo público carioca nas primeiras sessões, o filme desloca a ação, originalmente ambientada num cortiço na cidade de Santos, para um galpão abandonado em Nova York, onde moram dois imigrantes brasileiros ilegais, Paco e Tonho.
A força da transposição da marginalidade para o exterior está menos na imigração em si que no sintoma de uma sociedade fracassada, que não oferece nenhuma perspectiva e cuja qualidade de vida definha a cada dia. Tanto é assim, que a dupla prefere continuar excluída socialmente num país onde nem sequer domina o idioma.
Outra corajosa opção da fita foi transformar Paco em uma garota (competentemente interpretada por Débora Falabella), que perambula pelas ruas da cidade americana vestida como rapaz para conseguir dinheiro em troca de sexo.
O embate verbal entre Paco e Tonho (Roberto Bomtempo), principal fator do teor virulento e corrosivo da peça, adquire contornos particulares que ultrapassam os limites da atração física.
Tonho, cuja aspiração não vai além de voltar para o Brasil com alguns dólares no bolso, entrega-se submisso ao jogo obsessivo de Paco, que detém o controle apesar do aspecto frágil.
Entretanto, muita coisa permanece intacta em Dois Perdidos, a começar pelo motivo da discórdia entre o casal: a compra de um par de coturnos ao preço de 500 dólares. É a partir dessa discussão que emergem o desamparo, a agressão e atitudes que, em muitos momentos, beiram o desumano.
Dessa maneira, o filme mantém uma linguagem brutalmente crua, pinçada da marginalidade imposta pela metrópole, onde seres destituídos de tudo se vêem lutando com violência para assegurar seu espaço diário.
O diretor assumiu riscos ao adaptar a obra irretocável de um dos maiores teatrólogos brasileiros, morto em 1999, mas saiu-se bem.
A ingrata tarefa de Joffily de condensar a essência do manifesto de Plínio Marcos, encenado pela primeira vez em 1966 com o próprio autor no papel de Paco, comprova a atualidade da obra original, diante do atual quadro de crise social vivido pelo país.