O diretor Michael Mann não gosta de histórias fáceis, como se viu em O Informante (1999), onde ele filmou os bastidores da indústria tabagista e foi brindado com uma série de indicações ao Oscar. Em Ali, atração exibida no Festival do Rio BR 2002, optou por um herói nada comum, repleto de arestas e nutrido pela própria polêmica, o boxeador Muhammad Ali.
Pena que, por conveniências sempre misteriosas do mercado cinematográfico, a produção estrelada por Will Smith (indicado ao Oscar de melhor ator em 2002) ainda corre o risco de permanecer inédita no circuito comercial da maior parte do país.
Aquilo que o filme tem de melhor é reproduzir a energia inesgotável de seu protagonista, recriado com habilidade por um Will Smith visivelmente mais musculoso e de rosto transformado para ficar mais parecido com o homem real.
Mas Smith se apropria do espírito rebelde de Ali e injeta sua própria personalidade, distanciando-se momentaneamente dos papéis cômicos que lhe trazem notoriedade e dinheiro a rodo, como a franquia Homens de Preto.
Aqui, quem ainda não sabe, vai ter como descobrir a qualidade de atuação dramática deste jovem ator, que já a havia demonstrado, por exemplo, em Seis Graus de Separação, de Fred Schepisi.
Muhammad Ali renasce na tela, assim como o homem que não aceitou nada da vida do jeito que recebeu, nem mesmo seu nome de batismo, Cassius Marcellus Clay.
Anos depois, já boxeador de sucesso e convertido à fé muçulmana, ele abomina o sobrenome, para ele, "de escravo", e recebe do líder espiritual da Nação Islâmica, Elijah Muhammad, o novo nome, com o qual se celebrizou não só como esportista vitorioso de três campeonatos mundiais dos pesos-pesados, mas como líder da causa negra e da resistência à Guerra do Vietnã.
Por sua recusa, aliás, de atender à convocação do governo para lutar nesta guerra, ele enfrenta um inferno pessoal que o leva à perda do título de campeão mundial, à ruína financeira e à ameaça de prisão.
A América conservadora dos anos 70 não lhe perdoava declarações deste tipo: "Nenhum vietcongue jamais me chamou de 'negro'. Meus inimigos estão aqui e são eles que me negam meus direitos".
Apesar de tudo, o lutador, tão rápido e certeiro com as palavras como com os punhos, resistiu a tudo e ressuscitou de cada uma de suas mortes anunciadas.
Honesta e assumidamente contraditório, chegou a dizer que devia ter descoberto o islamismo aos 50 anos, pois aí poderia resistir melhor ao seu confesso fraco pelas mulheres (teve quatro esposas, além dos casos ocasionais). Fora do ringue, foi amado, disputado, abandonado e enfrentado por quase todas elas.
Um aspecto interessante do filme de Mann está em apontar a infiltração da Nação Islâmica pelo FBI, com um espião que tinha grande influência sobre o líder do movimento, levando-o a suspender Malcolm X (Mario van Peebles) e depois a aceitá-lo de volta.
Curiosamente, nessa volta o líder negro, que defendia métodos de ação menos pacifistas do que Martin Luther King, foi assassinado a tiros dentro de uma mesquita.
Evidentemente, as cenas de lutas de boxe são extensas e magnificamente filmadas, de modo a enfatizar a violência deste esporte que só perde provavelmente para as touradas nesse quesito - um detalhe que pode afugentar alguns espectadores, além da duração de 156 minutos.
Mesmo assim, vale a pena enfrentar estas dificuldades, porque o filme trará uma boa aproximação deste que foi uma das figuras-chave do século XX, num retrato que não oculta suas contradições.